Duas propostas para a redução da carga de juros da dívida pública

Tenho argumentado que a carga de juros da dívida pública brasileira é alta não apenas em decorrência da taxa Selic elevada, mas também da política cambial, da deterioração de expectativas para a economia brasileira[1] e do elevado percentual da dívida pública vincenda no curto-prazo[2]. Provavelmente nenhum economista discorde da importância de se reduzir a carga de juros da dívida pública, embora existam diversas interpretações sobre a melhor maneira para se fazer isso. É extremamente improvável que isso seria alcançada com voluntarismos como uma redução forçada da taxa Selic, que perdeu importância relativa como indexador da dívida pública, ou auditoria da dívida pública nos moldes propostos pela Auditoria Cidadã. E o que entendo ser uma estratégia adequada para reduzir a carga de juros da dívida pública? Não renovação dos swaps cambiais atrelada à venda de parte das reservas internacionais.

Antes de desenvolver meus argumentos, é necessário dizer que aquilo que defendo é uma opinião pessoal e não necessariamente reflete a postura institucional do Banco Central do Brasil (BCB). Em momento algum usei ou usarei informações de fontes internas para respaldar meus argumentos. Todos os dados aqui apresentados são públicos e podem ser obtidos no site do BCB.

Proposta 1: não renovar os swaps cambiais

Conforme já escrevi neste Blog, boa parte da alta na carga de juros da dívida pública em 2015 se deve às perdas com swaps cambias. Como se pode observar no Gráfico 1, mais da metade do aumento da carga de juros da dívida pública de 2015 comparativamente a 2014 se deve a isso. Logo, o estancamento das perdas com swaps cambiais geraria considerável redução da carga de juros, para algo em torno de 7% do PIB – ainda acima do padrão dos últimos anos.

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Fonte: BCB

Como a maioria dos contratos de swap cambial vence em seis meses e o real teve depreciação expressiva em agosto e setembro de 2015 (Gráfico 2), é de se esperar que no primeiro trimestre de 2016 as perdas com swaps cambiais continuem elevadas e comecem a cair a partir de abril, quando os contratos renovados a partir de setembro começam a vencer.

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Fonte: BCB

Entretanto, isso causaria algum estresse no mercado de câmbio, o que poderia resultar em nova rodada de depreciação cambial, algo in desejável porque o atual patamar da taxa de câmbio já torna o Brasil competitivo e um dólar mais alto aumentaria o desequilíbrio patrimonial das empresas endividadas em dólares e impediria queda na inflação, que ainda se encontra em dois dígitos. Por essa razão, entendo que a não renovação dos swaps cambiais deveria ser vinculada à venda de parte das reservas internacionais.

 

Proposta 2: Vender de parte das reservas internacionais

O BCB deveria conjugar a não renovação dos swaps com a venda de parte das reservas internacionais, que atualmente somam mais de USD 370 bilhões[3]. Se todo o estoque de swaps cambiais – aproximadamente USD 110 bilhões em valor nocional – fosse substituído pela venda de dólares das reservas, isso resultaria em USD 260 bilhões de reservas, patamar ainda bastante confortável.

Não se pode ignorar que a redução das reservas poderia ser interpretada como sinal de fragilidade, deteriorando ainda mais a percepção de risco quanto à combalida economia brasileira. Por isso, ela deveria ser parte de uma estratégia – articulada entre as áreas de câmbio e política monetária do BCB e o Tesouro Nacional – de redução da dívida pública vincenda no curto-prazo e diminuição do peso da Selic nas operações compromissadas. Antes de tratar da redução da dívida pública, é necessário fazer um parêntesis sobre os diferentes conceitos de dívida pública que uso no Gráfico 3:

– Dívida Bruta do Setor Público (DBSP) (linha verde) = Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) + Títulos emitidos pelo BCB para fins de política monetária. Em decorrência de vedação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o BCB não pode emitir títulos próprios e, por essa razão, desde 2006 não existem títulos emitidos pelo BCB. A partir de então, a DBSP corresponde exatamente à DBGG. A criação do conceito de DBSP é para que se possa comparar os valores da dívida pública bruta antes de 2006;

– DBSP + Títulos do Tesouro na carteira do BCB (linha vermelha) = Como a LRF veda a emissão títulos próprios do BCB, o BCB utiliza títulos do Tesouro Nacional para realizar a política monetária. Para não ter que solicitar títulos para o Tesouro Nacional periodicamente, o BCB costuma ter sobra de títulos do Tesouro Nacional em carteira. A diferença entre as linhas vermelha e verde são esses títulos que estão na carteira do BCB, mas não são utilizados. Representam uma dívida do Tesouro com o BCB, mas como, em decorrência da LRF o BCB aporta seus resultados no Tesouro Nacional, o impacto líquido sobre o setor público é nulo. Essa vedação à emissão de títulos próprios por parte do banco central é uma especificidade brasileira e, por essa razão, algumas publicações internacionais usam esse conceito de dívida pública. Apenas recentemente o Fundo Monetária Internacional (FMI) reconheceu que esse conceito não se aplica ao Brasil;

– Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) = DBGG – haveres do setor público, como recursos em caixa e os aportes do Tesouro Nacional no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Embora as reservas internacionais sejam haveres do Estado brasileiro, elas não são deduzidas diretamente para o cálculo da DLSP. O reflexo do acúmulo de reservas, atualmente me quase 20% do PIB, combinado com a depreciação cambial é o acúmulo de recursos na conta única do Tesouro Nacional: no final do ano passado, os recursos decorrentes do relacionamento entre Tesouro Nacional e BCB chegaram a R$ 882 bilhões, quase 15% do PIB;

Internacionalmente, é mais usual que a dívida bruta seja utilizada como indicador de endividamento público. No caso do Brasil, até há alguns anos, a maioria dos analistas utilizada a DLSP. Entretanto, em decorrência de pedaladas fiscais e manobras contábeis utilizadas a partir do final de 2012, diversos analistas passaram a observar o comportamento da dívida bruta. Como entre o segundo semestre de 2014 e dezembro de 2015 essas distorções foram corrigidas, entendo que a DLSP e a DBGG devem ser analisadas em conjunto.

Como se pode observar no Gráfico 3, no final do ano passado a DBGG era de 66% do PIB e a DLSP 36% do PIB. Grosso modo, essa diferença se deve ao acúmulo de reservas, que em dezembro do ano passado representavam mais de 20% do PIB, e aos aportes do Tesouro no BNDES, que em dezembro de 2015 representavam quase 9% do PIB. O grande problema é que a DBGG paga taxas de juros bem mais altas que o rendimento das reservas ou a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela qual os aportes do Tesouro são remunerados pelo BNDES. Por isso que, mesmo com o fim das pedaladas e manobras contáveis, a DBGG deve ser analisada em conjunto com a DLSP.

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Fonte: BCB

Como um dos reflexos da entrada de capitais e do acúmulo de reservas nos últimos anos foi o aumento das operações compromissadas realizadas pelo BCB para “enxugar” o impacto expansionista da base monetária da entrada de capitais (Gráfico 4), é possível que a venda das reservas contribua para reduzir o estoque, alongar o prazo e diminuir o peso da Selic nas operações compromissadas, aumentando a potência da política monetária, algo que Nakano vem defendendo há anos[4].

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Fonte: BCB

Conclusão

Se o BCB não renovar os swaps cambiais vincendos, o prejuízo com esses derivativos cambiais irá se reduzir progressivamente a partir do segundo trimestre. Para impedir que isso gere turbulência no mercado de câmbio, a não renovação de swaps deveria ser compensada com a venda de parte das reservas vinculadas exclusivamente à redução da dívida pública bruta e melhoria do perfil (alongamento de prazos e diminuição da importância da Selic como indexador) das operações compromissadas, o que aumentaria a potência da política monetária. A eliminação da perda com swaps combinada com a redução da dívida bruta gerariam diminuição da carga de juros da dívida pública dos atuais 8,5% do PIB para algo em torno de 6% do PIB. Trata-se de patamar estrutural que, para ser reduzido, depende de reformas na estrutura de despesas primárias, especialmente na previdência. Os próximos artigos do Blog serão sobre esse assunto.

[1]https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/03/sobre-o-aumento-nos-juros-da-divida-publica-em-2015/

[2]https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/21/por-que-a-auditoria-cidada-nao-e-levada-a-serio-ii-o-grafico-em-formato-de-pizza/

[3] http://www.bcb.gov.br/?RP20160219

[4] http://www.valor.com.br/opiniao/4437522/luz-no-fim-do-tunel

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Ainda sobre a auditoria da dívida pública: o caso do Equador

Após publicar três textos em que critico a Auditoria Cidadã, resta explicar os folhetos distribuídos pela Auditoria Cidadã que mencionam “redução de 70% da dívida após a realização da auditoria no Equador”.

Breve precedente histórico

Antes de descrever os resultados da auditoria da dívida pública no Equador, é necessário considerar o histórico da dívida equatoriana. Desde sua independência, em 1831, até o início do século XXI, o Equador nunca conseguiu pagar a dívida externa tempestivamente. Assim como o Brasil e a maioria das nações emergentes, houve aumento da dívida externa na década de 70, moratória no início dos anos 80, progressiva estatização da dívida externa durante os anos 80 e, nos anos 90, renegociação da dívida externa âmbito do Plano Brady. Diferentemente do Brasil, a renegociação da dívida equatoriana não foi suficiente para tornar o Estado solvente e, após a crise de 1999, a dívida externa pública chegou a quase 65% do PIB, acarretando nova moratória seguida de reestruturação da dívida externa. Em decorrência da péssima reputação do país, o setor privado já não tinha acesso a empréstimos externos de fontes privadas. Na década de 2000, a combinação de reestruturação da dívida pública externa, crescimento econômico e superávits fiscais nominais entre 2000 e 2008 (Gráfico 1) fez com que a dívida pública caísse de quase 80% do PIB em 1999 para pouco mais de 20% do PIB em 2007-08 (Gráfico 2).

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Fonte: Comissión Economica para America Latina y el Caribe (CEPAL)

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Fonte: CEPAL

Auditoria da dívida pública no Equador

Neste contexto ocorreu a auditoria da dívida pública equatoriana, cujas principais conclusões foram assim resumidas[1]:

”No processo de auditoria dos créditos, identificaram-se características e condicionalidades prejudiciais, restringindo, inclusive, qualquer ato de defesa por parte do país no resguardo de seus direitos, tais como:  a. Ingerência em assuntos internos do país com a consequente lesão à soberania; b. Renúncia à imunidade soberana do país, à imunidade de jurisdição e ao direito de defesa; c. Violação de direitos fundamentais das pessoas e povos, assim como desrespeito aos instrumentos internacionais de direito; d. cláusulas abusivas que violam aos direitos de país soberano; e. Violação aos estatutos do Fundo Monetária Internacional (FMI), Banco Mundial (BM), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e leis de Estados prestamistas e prestatários; f. Relação assimétrica entre as partes contratantes; g. Usura e anatocismo.”

É necessário fazer algumas observações sobre as diferenças das irregularidades apontadas pela Auditoria Cidadã no Equador em relação ao Brasil. Os itens a e b dizem respeito às cláusulas dos títulos emitidos a partir da renegociação da dívida externa no Plano Brady e, como o Brasil quitou esses títulos de dívida externa na década passada, essas críticas não se aplicam ao Brasil. Adicionalmente, como a dívida pública do Equador era e ainda é majoritariamente externa, a soberania é mencionada com frequência no relatório da auditoria, o que não faz sentido para o Brasil. A auditoria da dívida pública equatoriana dividiu a análise por tipo de credor, encontrando irregularidades nas dívidas com todas as classes de credores:

  • Dívida externa comercial (com agentes privados) – renegociação dos Bradies com renúncia de prerrogativas soberanas (itens a e b), troca dos títulos antigos antes do vencimento e anatocismo (item g);
  • Dívida externa com organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial e BID) – “As condições impostas através dos empréstimos multilaterais limitaram o gozo de direitos fundamentais de pessoas e povos, como direito à saúde, educação, trabalho, direito à alimentação e ao ambiente são, resultando em ausência de melhora das condições de vida da população (especialmente povos indígenas, trabalhadores rurais, afrodescendentes, em particular das mulheres); al contrário, se aprofundou a pobreza, aumentou o êxodo rural e se deterioraram as condições ambientais”;
  • Dívida externa bilateral (com outros Estados) – o Estado teve de assumir dívidas em decorrência da inadimplência de agentes privados;
  • Dívida interna – “a. A emissão interna de títulos do Estado tem servido, majoritariamente, para atender ao serviço da dívida pública externa, assim como para cobrir ineficiências dos grandes setores empresariais e bancários nacionais, os quais se beneficiaram, primeiramente, com a estatização da dívida privada (securitização) e, posteriormente, com salvamento bancário; c. A emissão de colocação dos títulos “AGD” transformaram o Estado, de credor dos bancos, em devedor do Banco Central; d. Ao emitir dinheiro para adquirir os títulos ADG, o Banco Central se omitiu da função de manter a estabilidade da moeda atribuída pela Constituição – ao contrário, contribuiu para uma acelerada perda de valor da moeda e posterior desvalorização cambial”

Como procurei demonstrar em artigo precedente[2], é extremamente improvável que os tribunais acatassem essas supostas irregularidades. Apesar do relatório da auditoria da dívida apontar irregularidades das dívidas contraídas com todos os tipos de credores, houve reestruturação de apenas dois Eurobonds correspondentes a 85% da dívida externa comercial. A redução de 70% na dívida do Equador que a Auditoria Cidadã divulga em seus folhetos diz respeito apenas os dois Eurobonds objeto da reestruturação. A dívida representada por esses títulos foi reduzida em USD 3,2 bilhões[3] (aproximadamente 5% do PIB do Equador). Como em 2008 a dívida pública era de USD 13,6 bilhões, sendo USD 10 bilhões (73%) externa e USD 3,6 bilhões (27%) interna, a auditoria resultou em redução de cerca de um terço da dívida externa e um quarto da dívida pública total – valores expressivos, mas distantes do que a Auditoria Cidadã dá a entender (Gráfico 3).

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Fonte: CEPAL

O fato de a auditoria da dívida pública ter apontado irregularidades nas dívidas com todos os credores e não ter ocorrido reestruturação da dívida pública interna, nem das dívidas públicas externas contraídas com outros Estados ou organismos multilaterais é um indício de que a renegociação da dívida equatoriana foi guiada por juízo de conveniência e oportunidade e apenas utilizou a auditoria como pretexto. A razão do Equador não ter reestruturado unilateralmente a dívida pública externa bilateral e multilateral e a dívida interna é simples: nesses casos, o Estado perderia acesso a crédito com taxas mais baixas. Após a reestruturação da dívida, foram justamente as dívidas interna e externa com organismos multilaterais que aumentou. Internacionalmente, a auditoria da dívida pública equatoriana foi interpretada como uma reestruturação unilateral de dívida[4]. As razões de sucesso da estratégia podem assim ser resumidas[5]:

  • Nos anos anteriores à reestruturação da dívida, o governo acumulou superávits fiscais nominais, de modo que não necessitava de financiamento no curto e médio prazo, além de ter caixa suficiente para pagar parte da dívida em dólares (moeda adotada pelo Equador);
  • O Equador tinha histórico de ser mau pagador da dívida externa e em meados da década passada tanto o governo, quanto as empresas equatorianas já haviam perdido acesso aos mercados financeiros internacionais. Em outras palavras, não havia praticamente nada a perder com um default nos credores externos privados;
  • O governo equatoriano esperou momento oportuno para impor reestruturação da dívida: a crise financeira internacional de 2008-09, momento em que um dos principais credores do governo tinha necessidade liquidar ativos financeiros para fazer caixa;
  • Uso de um banco local para adquirir os já mencionados Eurobonds e reduzir o poder de eventuais fundos abutres, evitando, com isso, incorrer no problema que a Argentina está enfrentando;

Os benefícios da reestruturação da dívida foram evidentes: como se pode observar no Gráfico 1, a carga de juros da dívida pública (diferença entre saldo primário e saldo nominal) teve queda expressiva a partir de 2009. Por essa razão, embora as dívidas públicas interna e externa tenham aumentado após a reestruturação de 2009, ela se tornou sustentável: em 2014, o país voltou a realizar captações privadas[6] e, em dezembro de 2015 o governo do Equador pagou tempestivamente a dívida externa pela primeira vez na história[7], o que quase foi obtido à custa de atraso no pagamento do décimo-terceiro salário dos servidores públicos.

Lições da experiência equatoriana para o Brasil

Embora o Equador tenha utilizado a auditoria da dívida pública como pretexto para reestruturar parte da dívida pública externa, a decisão foi essencialmente pragmática – decidiu-se pela preservação dos credores com poder de retaliação e pela reestruturação da dívida com os credores nos quais os benefícios da reestruturação excederiam os custos. Se a roupagem jurídica da auditoria tivesse sido realmente considerada, a reestruturação da dívida teria atingido todos os credores e o governo equatoriano não teria utilizado um banco local para evitar a compra de títulos da dívida por parte de fundos abutre. A perda de credibilidade do governo tampouco era uma questão muito relevante, pois não pagar dívida externa era a regra histórica do país.

Há duas hipóteses em que a moratória da dívida pública deve ser considerada: i. os custos de uma moratória – perda de credibilidade (o que se traduz em maiores taxas de juros para novas dívidas contraídas) e/ou retaliação de credores prejudicados (na dívida externa, isso pode resultar inclusive em constrição judicial sobre as reservas internacionais) – são menores que os benefícios (redução da carga de juros incidente sobre a dívida pública); ii. o Estado é insolvente, como o Brasil do início dos anos 90 ou a Grécia atual. Nesses casos, a decisão relevante não é se haverá moratória ou não, mas quando e como. No caso do Equador, a reestruturação da dívida do início da década passada foi motivada pela insolvência do Estado. Já a reestruturação de 2009 decorreu do sopesamento dos custos e benefícios de uma moratória.

No Brasil, embora a dívida bruta do setor público seja relativamente grande (66,2% do PIB), com elevado percentual vencendo no curto-prazo e taxas de juros altas[8], o Estado brasileiro é solvente, pelo menos no médio-prazo. Logo, a análise de uma eventual moratória deveria ser guiada por uma análise custo-benefício. Conforme já ressaltado por este Blog[9], a maior parte da dívida externa é privada, de modo que uma reestruturação da dívida pública externa traria poucos benefícios para o Estado, mas prejudicaria o setor privado ao elevar o custo dos empréstimos externos. O principal componente da dívida do governo federal é a dívida mobiliária interna, cuja composição pode ser visualizada no Gráfico 4

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Fonte: Tesouro Nacional (os valores referentes ao governo eram classificados como instituições financeiras e fundos de investimento)

Da dívida mobiliária federal interna, 25,5% é detido pelas instituições financeiras – o que inclui os bancos estatais, como Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que representam parcela expressiva do Sistema Financeiro Nacional (SFN), 19,4% pelos fundos de investimento, 21,4% pelos fundos de previdência complementar, 18,8% pelos não residentes, 5,8% por entes governamentais ou fundos administrados pela União, como Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), 4,6% seguradoras e resseguradores e 4,9% outros credores, como pessoas físicas.

Embora a parcela da dívida pública detida pelas instituições financeiras esteja caindo ao longo do tempo e atualmente o estoque de crédito representar quase cinco vezes (2,5 vezes se levarmos em conta apenas o crédito ofertado com recursos livres) o valor dos títulos públicos na carteira das instituições financeiras, a consequência direta de um default da dívida interna seria a descapitalização dos bancos e a insuficiência de capital frente aos requerimentos regulatórios, levando a uma necessidade de capitalização por parte dos acionistas – no caso de BB, CEF e BNDES, a própria União. Além do mais, a insuficiência de capital das instituições financeiras poderia levar a uma crise sistêmica com consequências imprevisíveis, gerando a necessidade de resgates por parte do Banco Central. Não é coincidência que historicamente o não pagamento da dívida pública esteja associado a reformas monetárias e confisco dos depósitos bancários. Para as seguradoras e resseguradoras, uma moratória também levaria a um desenquadramento nos requerimentos regulatórios e possível crise no setor. No caso dos fundos de previdência complementar, a moratória traria a necessidade de aportes adicionais por parte dos beneficiários e empregadores – em grande parte, empresas estatais. O não pagamento dos títulos detidos por fundos de investimento afetaria grandes investidores, mas também as classes A e B, que aplicam parte expressiva da poupança em fundos.

Portanto, uma reestruturação da dívida interna não afetaria apenas o “andar de cima”, como muitos dão a entender. Ela teria efeitos sistêmicos de difícil mensuração sobre instituições financeiras, seguradoras e fundos de pensão. Mais que isso: dado o peso dos bancos estatais e dos fundos de previdência complementar de empresas estatais, parte do esforço da moratória seria anulado pela necessidade de aporte de dinheiro público nestas instituições.

Conclusão

 Como procuramos demonstrar nesses quatro artigos sobre a auditoria da dívida pública, os argumentos apresentados pela Auditoria Cidadã apresentam diversas falhas: i. a Associação fornece valores equivocados para a dívida pública e parte de premissas equivocadas, como a de que a União seria garantidora da dívida privada externa; ii. embora a carga de juros da dívida pública brasileira seja muito alta, é metodologicamente equivocada e totalmente despropositada a ideia de que quase metade do orçamento é para o serviço da dívida pública; iii. as supostas irregularidades encontradas não são respaldadas pela jurisprudência, pois juridicamente os argumentos são frágeis; iv. embora a redução da dívida do Equador tenha sido bem menor que os 70% propagandeados pela Auditoria Cidadã, é inegável o sucesso da estratégia do país. No entanto, como procuramos demonstrar, a reestruturação da dívida partiu de uma análise de custo-benefício, de modo que as irregularidades apontadas pela auditoria foram mero pretexto para o corte de parte da dívida externa pública – a maioria dos credores sequer foi afetada; v. dado o perfil da dívida pública brasileira, os custos de uma moratória da dívida pública provavelmente excederiam os benefícios. Ainda assim, é essencial reduzir os juros elevados da dívida pública brasileira. Pretendo tratar do assunto nos próximos artigos.

[1]http://www.auditoriadeuda.org.ec/images/stories/documentos/informe_final_CAIC.pdf , pp. 149-152 (Tradução livre).

[2] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/28/por-que-a-auditoria-cidada-nao-e-levada-a-serio-iii-as-supostas-irregularidades-encontradas/

[3] https://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/042613.pdf

[4] Mesmo defensores da estratégia equatoriana reconhecem tratar-se de medida unilateral: http://laurocampos.org.br/2009/06/equador-auditoria-garante-resultados-positivos-ao-pais

[5] http://blogs.reuters.com/felix-salmon/2009/05/29/lessons-from-ecuadors-bond-default/ ;

http://www.economist.com/node/13854456 e http://www.ft.com/cms/s/3/da0bb8fc-a348-11e5-bc70-7ff6d4fd203a.html#axzz3yNI54hK8

[6] http://www.ft.com/cms/s/0/3fead266-f300-11e3-85cd-00144feabdc0.html

[7]http://www.bloomberg.com/news/articles/2015-12-15/ecuador-makes-history-with-650-million-payment-to-bondholders

[8] Vide Gráficos 6 e 7 do post: https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/21/por-que-a-auditoria-cidada-nao-e-levada-a-serio-ii-o-grafico-em-formato-de-pizza/

[9] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/16/por-que-a-auditoria-cidada-nao-e-levada-a-serio-i-o-valor-da-divida-nao-tem-sentido/

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? III. As supostas irregularidades encontradas

Contexto histórico da proposta de auditoria da dívida externa

Durante os anos 70, os bancos centrais de países avançados praticaram taxas de juros baixas e frequentemente menores que a inflação para tentar aquecer a economia e sair da estagflação na qual se encontravam. Como as taxas de juros apresentavam tendência de queda, diversos países periféricos, incluindo as nações então socialistas, passaram a tomar empréstimos com taxas de juros flutuantes, tais como a London Interbank Offer Rate (LIBOR). Isso parecia extremamente vantajoso no contexto de taxas de juros baixas dos anos 70, até que, em 1979, o Federal Reserve, banco central norte-americano, subiu os juros para patamares sem precedentes. Além de causar uma recessão global, essa alta de juros tornou excessivamente oneroso o serviço da dívida externa e, por essa razão, diversos países da América Latina, Leste Europeu África declararam moratórias. Em 1988, quase 90% da dívida externa era pública e as reservas internacionais eram de pouco mais de 9 bilhões de dólares.

É neste contexto histórico que deve ser interpretado o art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual determina o “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Quando a Constituição Federal foi promulgada, o Brasil se encontrava em plena crise da dívida externa. No início dos anos 90, a dívida externa pública foi renegociada no âmbito do Plano Brady e na década passada o setor público acumulou mais de 300 bilhões de dólares em reservas, de modo que, atualmente, o setor público brasileiro é credor líquido externo. Ademais, diferente dos anos 80, atualmente a maior parte da dívida externa é privada, algo já tratado neste Blog[1].

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Fonte: BCB (séries 3564, 3566 e 3545)

Devido à renegociação e melhora significativa no perfil do endividamento externo, entendo que o mandamento do art. 26 do ADCT perdeu a eficácia, embora ainda não tenha sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na questão na ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 59. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública de 2010 também concluiu que o objeto da auditoria da dívida externa perdeu importância e, diante da ausência de fundamentos concretos de irregularidades no processo de renegociação da dívida externa, a contratação e auditoria externa não foi recomendada:

“Acreditamos que o mecanismo de auditoria não teria sido hoje indicado no âmbito dos trabalhos desta Comissão, até mesmo porque seu objeto perdeu a importância que teve 20 anos atrás, com a solução satisfatória posterior da crise da dívida externa e nenhuma indicação de recrudescimento recente de problemas nessa área. Acresça-se aos argumentos acima o fato de que diversos expositores, inclusive o representante do TCU, especificamente perguntados, disseram desconhecer qualquer indício de ilegalidade ou comportamento suspeito de agentes públicos nos períodos em que observaram ou participaram do processo de contratação e de renegociação da dívida pública. Aqueles que levantaram críticas ao processo de endividamento e aos termos acertados nas sucessivas renegociações não ofereceram à CPI elementos que fundamentassem acusações concretas contra procedimentos ou pessoas (…) Pelas razões expostas acima, não nos inclinamos a sugerir a contratação de auditoria externa para esse fim.”[2]

Ainda assim, a Auditoria Cidadã menciona frequentemente a CPI da dívida pública, dizendo que “A CPI identificou sérios e vários indícios de ilegalidades do endividamento externo e interno (…)”[3]O que eles omitem é que as supostas ilegalidades não constam do relatório final da CPI.

As principais ilegalidades apontadas pela Auditoria Cidadã:

– Boa parte da dívida atual decorre da obscura e questionável dívida da ditadura (ou seja, um governo ilegítimo), com clausulas ilegais e sem documentação;

É verdade que antes da ditadura militar as dívidas pública e externa tinham valor pouco significativo – em 1965, a dívida federal interna era de 0,5% do PIB. Portanto, grosso modo pode-se dizer que as dívidas surgiram durante o governo militar. Ainda assim, o fato da dívida ter sido contratada por um governo ilegítimo não é apto a torna-la nula, pois se admite a recepção de leis e atos normativos realizados durante o governo militar, desde que não sejam incompatíveis com a atual Constituição.

Adicionalmente, poucos especialistas em finanças públicas irão discordar que, quando a Constituição de 1988 foi promulgada, o Estado brasileiro se encontrava praticamente insolvente. Em decorrência dessa crise fiscal, nos primeiros anos após a promulgação da Constituição Cidadã, a dívida pública interna e externa foi repactuada. Primeiramente isso ocorreu com a dívida interna: em decorrência das medidas de redução da liquidez (“confisco”) e troca compulsória de indexadores da dívida federal interna do Plano Collor, houve redução de 82,5% da dívida em poder do público em 1990[4]. Ainda no início dos anos 90, a dívida externa foi renegociada em decorrência do Plano Brady e o trecho citado do relatório da CPI da dívida pública deixa claro que não foram encontradas irregularidades neste processo de renegociação. Portanto, a dívida pública brasileira – interna e externa – já foi renegociada nos primeiros anos da ordem constitucional vigente e atualmente é composta exclusivamente de títulos emitidos durante o regime democrático.

– Utilização de juros flutuantes, ilegais segundo o Direito Internacional;

A correção de contratos e instrumentos financeiros por taxas flutuantes, como a LIBOR e a taxa de Depósito Interfinanceiro (DI), é prática corriqueira no mercado financeiro internacional, sendo explicitamente reconhecida pelo art. 8.6 da Convenção Internacional de Notas de Câmbio e Notas Promissórias[5]. A Convenção admite a utilização de taxas flutuantes, desde que as isso conste do instrumentos negocial, as taxas sejam publicas e não dependam do arbítrio unilateral de outra pessoa, podendo haver limitação prévia das bandas de variação para as taxas de juros[6]. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tampouco questiona a validade dessas cláusulas: “é válida a taxa Libor como indexadora dos juros remuneratórios, desde que prevista no contrato, uma vez que não decorre de imposição unilateral do credor, tratando-se de percentual flutuante conforme as variações do mercado internacional.” (REsp 164929/RS, de 14/12/2000, que reitera entendimento já adotado no REsp 11593 / RJ, de 29/03/1993).

– Aplicação de juros sobre juros (“anatocismo”, vedado pela Súmula 121 do STF);

É verdade que a Súmula 121 do STF veda a capitalização de juros, ainda que expressamente pactuada. No entanto, o próprio STF reconhece que a vedação enunciada pela Súmula 121 do STF não se aplica se houver norma especial autorizando a capitalização de juros em prazo inferior a um ano (RE 100336/PE, de 10/12/1984). Nos negócios realizados com instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) a capitalização de juros em prazo inferior a um ano é autorizada pela Medida Provisória 2.170/01, desde que expressamente pactuada (Súmula STJ 539). Em 04.02.2015, o STF decidiu pela constitucionalidade da MP 2.170/01 (RE 592377/RS). Assim como ocorre com alguns negócios bancários, a capitalização dos títulos da dívida pública interna também é disciplinada por normas especiais, o que exclui a aplicação da Súmula 121 do STF. O Decreto 3.859/01 é a norma que estabelece as características dos principais títulos da dívida pública federal[7].

– O pagamento antecipado de parcelas da dívida externa com ágio de até 70%;

A Auditoria Cidadã limita-se a fazer acusação genérica, sem apresentar indícios de irregularidades nas operações do Tesouro Nacional. Nada impede que o Tesouro Nacional realize resgate antecipado de títulos se justificadamente isso significar benefício para a administração. No caso da dívida externa, as recompras visam a melhorar o perfil de prazos e taxas da dívida[8]. Ao contrário do que a Auditoria Cidadã dá a entender, os resgates antecipados são divulgados no Relatório Mensal de Dívida do Tesouro Nacional[9] e estão sujeitos às auditorias da Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU).

– A realização, pelo Banco Central, de reuniões trimestrais com representantes de bancos e outros rentistas, para a estimar variáveis como juros e inflação, que depois são utilizadas pelo COPOM para a definição das taxas de juros (ou seja, é “colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”)

O Comitê de Política Monetária (COPOM) se reúne a cada seis semanas para definir meta para a taxa Selic, de modo a atingir a meta de inflação estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O contato com agentes do mercado financeiro ocorre porque um dos canais de atuação da política monetária – na verdade, de toda a política econômica – é pelas expectativas. Por essa razão, o BCB possui uma sistemática de coleta semanal das expectativas dos agentes econômicos e realiza reuniões periódicas para eliminar ruídos na comunicação com o público. Não se pode esquecer que o BCB também tem competência para regulamentar, fiscalizar e zelar pela estabilidade do sistema financeiro, de modo que as reuniões com instituições financeiras são inerente à atividade da Autoridade Monetária. Deve-se lembrar que a relação entre a meta da taxa Selic definida pelo COPOM e o custo da dívida pública não é tão direta como a Auditoria Cidadã dá a entender: embora a taxa Selic seja indexador direto de parcela considerável da dívida pública e influencie na formação das taxas dos outros títulos públicos federais, o custo da dívida pública é influenciado pela inflação, taxa de câmbio e expectativas, conforme já analisado neste Blog[10]. Os apontamentos quanto a possíveis conflitos de interesses existentes no relacionamento entre o BCB e as instituições financeiras podem ser de grande valia parta o aprimoramento da governança do BCB ou mesmo reforma das leis que regulam a atuação da Autarquia, mas é uma crítica vazia no âmbito de uma auditoria da dívida pública.

– A grande destinação dos recursos orçamentários para o pagamento da dívida viola os direitos humanos e sociais.

Trata-se de argumento extremamente aberto e impreciso: em tese, toda despesa pública concorre com despesas que visam à concretização de direitos humanos e sociais. Inclusive as próprias despesas sociais concorrem com outras despesas sociais – maiores gastos com ensino superior implicam menos recursos para educação básica, por exemplo. Podem colocar o nome que for, mas cancelar, anular ou reduzir a dívida pública com base neste tipo de argumento equivale a uma moratória. É exatamente isso que foi feito no Equador e é esse o objetivo da Associação na auditoria da dívida grega.

Conclusão: Por que não fazer uma auditoria da dívida? 

Mesmo discordando das teses da Auditoria Cidadã, muitos defendem a auditoria da dívida pública pela ideia de que “quem não deve, não teme”. Não se trata de medo de realização de auditoria, mas do reconhecimento que auditorias da dívida pública já são realizadas rotineiramente pela CGU e pelo TCU e que na CPI da dívida pública os argumentos da Auditoria Cidadã não foram acatados. Adicionalmente, muitos dos questionamentos apresentados pela Auditoria Cidadã podem ser encontrados em uma pesquisa nos sites do Tesouro Nacional e BCB, que mensalmente publicam dados detalhados a respeito da dívida pública e variáveis fiscais. Finalmente, mesmo que todos os auditores sejam voluntários, o atendimento aos questionamentos de auditores consome recursos humanos e financeiros não desprezíveis para fazer algo que já é feito.

Procurei demonstrar em três artigos que os argumentos da Auditoria Cidadã são frágeis:

– Cálculo incorreto da dívida pública interna e tese equivocada que o BCB é obrigado a ofertar divisas para o pagamento da dívida externa privada, erro elementar para quem se propõe a realizar auditoria;

– Soma indevida de despesas de juros com rolagem da dívida, o que dá a falsa impressão que quase metade do orçamento é direcionado para o serviço da dívida pública;

– Interpretação excessivamente ampla e fora do contexto histórico do art. 26 das ADCTs;

– Omissão de que tanto a dívida pública interna quanto a externa foram repactuadas no início dos anos 90;

– Argumentos jurídicos superficiais e que não encontram respaldo na jurisprudência.

Em razão da fragilidade dos argumentos econômicos e jurídicos, a Auditoria Cidadã não costuma ser levada a sério pelos especialistas em políticas públicas e o mercado a interpreta como ela realmente é: uma roupagem econômica e jurídica para a realização de uma moratória da dívida pública. Se a presidenta Dilma não tivesse vetado a realização da Auditoria Cidadã, o mercado teria interpretado a medida como um aumento da probabilidade de default da dívida pública, o que elevaria fortemente os juros para a rolagem da dívida. Em alguns dias publicarei o último artigo a tratar da auditoria da dívida pública, com considerações sobre as consequências da auditoria da dívida pública realizada no Equador.

[1] Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? I. O valor da dívida não tem sentido

[2]http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/53a-legislatura-encerradas/cpidivi/relatorio-final-aprovado/relatorio-final-versao-autenticada

[3]http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/11/Verdades-e-mentiras-sobre-a-divida.pdf

[4] Em 1965, a dívida federal interna representava apenas 0,5% do PIB. Fonte: http://www3.tesouro.gov.br/divida_publica/downloads/Parte%201_2.pdf

[5] https://www.uncitral.org/pdf/english/texts/payments/billsnotes/X_12_e.pdf

[6] For the protection of debtors, the Convention permits rates to vary only in accordance with provisions stipulated in the instrument and in relation to one or more reference rates published or otherwise publicly available. As a further protection, the reference may not be subject, directly or indirectly, to unilateral determination by a person who is named in the instrument at the time the bill is drawn or the note is made, unless the person is named only in the reference rate provisions. There may also be stipulated limits to the permissible variations in the interest rate. (…) Instruments with floating rates of interest 34. The Convention permits instruments to bear interest at a variable rate without loss of negotiability. Where the technique used is in accordance with the requirements of the Convention, the sum payable is deemed to be a definite sum despite the variable rate of interest. Disponível em: http://www.uncitral.org/pdf/english/texts/payments/billsnotes/Bills_of_Exchange_expl_Note.pdf

[7] As normas que disciplinam outros títulos públicos federais podem ser consultadas no site do Banco Central do Brasil (BCB) http://www.bcb.gov.br/htms/demab/CaracteristicaTitulos.pdf

[8] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/programa-de-resgate-antecipado

[9] https://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt/relatorio-mensal-da-divida

[10] No início deste mês, publiquei texto sobre os juros da dívida pública no Blog: https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/03/sobre-o-aumento-nos-juros-da-divida-publica-em-2015/

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? II. O Gráfico em formato de pizza

Quando se discute a necessidade de ajuste fiscal, reformas da previdência ou mesmo o aumento das tarifas de transporte público nas capitais, é frequente que alguma pessoa, mesmo desconhecendo a Auditoria Cidadã, cite o famoso gráfico em formato de pizza em que praticamente metade do orçamento seria destinada para juros e amortizações da dívida pública. Logo, se o governo deixasse de direcionar tantos recursos para a dívida pública, seria possível aumentar despesas com previdência, subsídios ao transporte público, educação superior etc: Em 2014, o governo federal gastou R$ 978 bilhões com juros e amortizações da dívida pública, o que representou 45,11% de todo o orçamento efetivamente executado no ano. Essa quantia corresponde a 12 vezes o que foi destinado à educação, 11 vezes aos gastos com saúde, ou mais que o dobro dos gastos com a Previdência Social (…).[1] De acordo com o “Dividômetro”, em 2015, até 01/dez, a dívida consumiu R$ 958 bilhões = 46% do gasto federal[2]

A maioria dos especialistas em finanças públicas nunca deu maior atenção para o gráfico da Auditoria Cidadã porque analistas familiarizados com estatísticas fiscais costumam se lembrar de cabeça algumas ordens de grandeza: se há anos a carga tributária encontra-se entre 30% e 35% do PIB, a despesa com juros em torno de 5% do PIB, conclui-se, por meio da regra de três, que os juros representam de 15 a 20% da carga tributária – 17% em 2014 (Gráfico 1). Evidentemente que tal comparação é imprecisa, pois, embora os tributos constituam a principal fonte de receitas públicas, o Estado conta com receitas de seu próprio patrimônio (receitas originárias), tais como royalties sobre recursos naturais e dividendos de empresas estatais. Ainda assim, essa comparação simples é suficiente para que o gráfico em formato de pizza da Auditoria Cidadã não seja levado em conta, embora seja consensual que a carga de juros da dívida pública é muito alta no Brasil.

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Fonte: Banco Central do Brasil (BCB), Receita Federal (RF) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [3]

Entretanto, críticas deste tipo não levam em conta a lógica interna dos argumentos que procuramos refutar. Neste sentido, antes de passar às críticas, é necessário entender como a Auditoria Cidadã chegou a números tão impressionantes. O conceito de “orçamento executado” da Auditoria Cidadã é o de valores pagos, excluídos aqueles referentes a restos a pagar[4]. Conforme se pode ver nos Gráficos 1 e 2, as despesas com a dívida pública teriam correspondido a 45% dos pagamentos em 2014 e 42% em 2015 (a diferença com o “Dividômetro” se dá porque o valor do Gráfico 2 já leva em conta o mês de dezembro de 2015).

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Fonte: Senado Federal

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Fonte: Senado Federal

Diferentemente das imprecisões no cálculo da dívida pública, algo já tratado neste Blog[5], os percentuais de despesas públicas referentes a juros, amortizações e refinanciamentos da dívida apresentados pela Auditoria Cidadã estão corretos e são facilmente encontrados no site do Senado Federal[6]. Embora os valores estejam corretos, a comparação entre os pagamentos com juros, amortizações e refinanciamentos e as demais despesas não tem significado prático. O aspecto-chave para se entender a falha no raciocínio da Auditoria Cidadã é que boa parte do orçamento do governo central também é composta de receitas financeiras, como pode observar no Gráfico 4.

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Fonte: Senado Federal

Isso ocorre porque, devido à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), art. 5º, § 1º, “Todas as despesas relativas à dívida pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que atenderão, constarão da Lei Orçamentária Anual”. Ou seja, devem constar do orçamento tanto as emissões de títulos que aumentam a dívida pública, quanto emissões que não a alteram (p. ex. refinanciamento de principal). Por exemplo, para pagar um título de R$ 1 milhão que vence em uma semana, o Tesouro Nacional emite hoje um título de R$ 1 milhão, o que resulta simultaneamente em uma receita financeira hoje e uma despesa com a dívida pública em uma semana. Como se pode observar no Gráfico 5, boa parte dos resgates da dívida pública (93,3% entre janeiro de 2007 e novembro de 2015) foi coberta com novas emissões. Em 2014, por exemplo, houve resgates de R$ 637 bilhões (65% da área vermelha do Gráfico 2) e emissões de R$ 567 bilhões (56% da área vermelha do Gráfico 3). Trata-se de um mecanismo que “infla” tanto as despesas quanto as receitas com a dívida pública e visa tão somente a aumentar a transparência das operações do Tesouro Nacional. Se a dívida fosse cancelada ou anulada, a queda no encargo da dívida seria integralmente compensada por uma perda de receita financeira. Portanto, é falsa a ideia de que despesas sociais e investimentos públicos poderiam dobrar se a dívida fosse cancelada ou anulada – o espaço no orçamento seria significativamente menor que aquilo que a Auditoria Cidadã dá a entender com o gráfico em formato de pizza.

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Fonte: Tesouro Nacional

Em larga medida, o elevado valor de emissões e resgates ocorre porque parcela significativa da dívida pública brasileira vence no curto-prazo – e isso é uma das razões pelas quais é indevido comparar o nível de endividamento público brasileiro com o de outros países para se concluir que a dívida pública brasileira não seria assim tão alta. Em novembro de 2015, 22% da dívida mobiliária federal (R$ 568 bilhões) venceriam em até 12 meses. Ou o setor público realiza um superávit primário dessa magnitude (quase 10% do PIB), ou terá que refinanciar parte deste montante no mercado financeiro ou deixa de pagar a dívida pública vincenda. Cabe mencionar que, apesar de precário, o perfil da dívida pública interna já foi pior: em dezembro de 1999, 55% da dívida mobiliária federal tinha vencimento em até 12 meses (Gráfico 6).

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Fonte: Tesouro Nacional[7]

Antes do vencimento dos títulos, o Tesouro Nacional realiza leilões com regras e prazos pré-definidos a fim de ter os recursos necessários para pagar juros e amortizar os títulos vincendos[8]. Caso realizasse os leilões na data de vencimento dos títulos, o Tesouro Nacional correria riscos de ter de refinanciar a dívida a taxas muito altas ou mesmo não conseguir refinanciar o montante desejado. Em algumas situações, o Tesouro Nacional realiza resgate antecipado de títulos com o objetivo de eliminar distorções de mercado ou aproveitar-se de condições favoráveis de financiamento. Apesar dessas informações serem públicas[9], a Auditoria Cidadã trata como uma descoberta da CPI da Dívida: A CPI da Dívida revelou que antes de cada vencimento de obrigações da dívida é feita nova oferta de títulos ao mercado, por meio dos “dealers” (grandes bancos que tem (sic) a prioridade na negociação dos títulos), ficando o Tesouro sujeito à chantagem do mercado financeiro, que só compra os títulos quando as taxas de juros se elevam até onde desejam os bancos. Assim, não se trata de mera troca, mas novas operações em novas condições, sujeitas às comissões e demais custos que tampouco são revelados de forma transparente pelo governo.[10]

Há outros casos de correspondência entre receitas e despesas de juros, embora em geral as receitas com juros sejam menores que as despesas a que estão relacionadas. Parte da dívida pública emitida pelo governo central (=despesas com juros, amortizações e resgates) tem como contrapartida haveres do governo central que também rendem juros (receitas financeiras), tais como:

– Reservas internacionais de aproximadamente USD 369 bilhões (novembro de 2015 e 18 de janeiro de 2016)[11], em sua grande maioria em títulos públicos de países emissores de moedas conversíveis[12];

– Dívidas de estados, municípios e empresas estatais com a União no valor de R$ 561 bilhões (novembro de 2015) decorrentes de renegociações (Lei 8.727/93, 9.496/97, Medida Provisória 2.185-35/2001) e reestruturações de dívidas. No passado, a União assumiu essas dívidas, resultando em expansão da dívida mobiliária federal e contratos de empréstimos da União com os entes subnacionais e estatais. Tais contratos em geral são remunerados por um índice de inflação mais taxas de juros e tiveram as taxas de juros diminuídas pela Lei Complementar 148/2014;

– Créditos do Tesouro Nacional junto Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que, em novembro de 2015 atingiram o montante de R$ 526 bilhões, os quais são remunerados pela Taxa de Juros de Longo-Prazo (TJLP), atualmente em 7,5% ao ano[13];

Portanto, em decorrência de elevado estoque da dívida mobiliária interna com vencimento no curto-prazo, de operações do Tesouro Nacional que visam a corrigir distorções e aproveitar-se de condições de mercado favoráveis e da expansão da dívida pública vinculada aos ativos da União, a comparação dos valores brutos dispendidos com juros, amortizações e resgates da dívida pública com outras despesas do governo central são de pouca utilidade prática para se entender o custo da dívida pública e o que isso representa em termos de sacrifício social. Não por outra razão, a metodologia internacionalmente aceita para finanças públicas leva em conta os juros e amortizações líquidos.

Em 2015, o Mercado Popular publicou texto no qual, partindo de uma metodologia distinta da adotada por este artigo, também refuta a ideia de que quase metade do orçamento é para pagar a dívida pública[14]. Ironicamente o texto do Mercado Popular incorre na mesma premissa falaciosa da Auditoria Cidadã: a comparação entre dívida e orçamentos do Estado com dívida e orçamentos pessoais, como se não houvesse muita diferença entre economia e economia doméstica. Isso fica evidente no início do texto do Mercado Popular, quando ressaltam que a dívida pública idealmente é emitida para financiamento de longo-prazo e para suavizar os impactos sociais das crises econômicas. Curiosamente, uma das razões pelas quais a Auditoria Cidadã considera a dívida pública ilegítima e ilegal é que não veem na dívida pública uma contrapartida em financiamento de longo-prazo ou políticas anticíclicas.

O aspecto que tanto a Auditoria Cidadã quanto o Mercado Popular desconsideram é que a dívida pública não é apenas resultado da política fiscal adotada, mas também das políticas monetária e cambial. Em outro texto publicado no início do mês[15], demostrei como o aumento do déficit público de 6% para 9,3% do PIB decorre de: a) aumento do déficit primário de 0,6% para 0,9% do PIB; b) aumento nas perdas com swaps cambiais de 0,2% para 1,8% do PIB; c) aumento da carga de juros de 5,3% para 6,7% do PIB sendo este último devido pelo do aumento da taxa Selic, inflação mais alta e deterioração das expectativas. Ao simplificar a questão a um denominador comum facilmente explicável – dívida adquirida sem contrapartida ou um Estado intrinsecamente perdulário – ambos deixam de tratar de aspectos essenciais da dívida pública brasileira. Desse modo, explicações como o gráfico em formato de pizza da Auditoria Cidadã são de pouca valia para a compreensão das variações da carga de juros ao longo do tempo. Levando-se em conta os números dos Gráficos 1 e 2, as despesas com juros, amortizações e refinanciamentos teriam caído de 45% para 42% do total de pagamentos realizados de 2014 para 2015, mas o que ocorreu foi exatamente o oposto.

No Gráfico 7, referente aos últimos 18 anos, pode-se observar que as despesas líquidas com juros da dívida pública sempre representaram entre 10% e 30% das despesas do governo central, patamar estruturalmente alto. Mesmo entre 2012 e 2013, quando a Selic esteve na mínima histórica, 15% das despesas eram com juros. Além de estruturalmente altas, as despesas com juros chegam próximas de 30% do total nos anos em que há depreciação cambial intensa (1999, 2002 e 2015) e sofrem flutuações de curto-prazo relacionadas aos ciclos da política monetária, embora a partir de 2012 a relação entre Selic e despesas com juros já não seja tão forte. Finalmente, no Gráfico 7 pode-se observar como as perdas com swaps cambiais explicam a maior parte do recente aumento na carga de juros.

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Fonte: Tesouro Nacional e BCB

Conclusão

Em novembro de 2015, a despesa com juros da dívida do setor público correspondia 26,7% das despesas do governo central, sendo 19,6% apropriação de juros propriamente ditos e 7% perdas com swaps cambiais. Sem sombra de dúvida um percentual elevadíssimo, mas longe dos 45% propalados pela Auditoria Cidadã. Ademais, embora sedutora, a ideia de que bastaria direcionar os recursos com a dívida para saúde, educação e outras áreas é falsa. Finalmente, tampouco concordo com quem vê na elevada dívida pública apenas o reflexo de um Estado perdulário. A dinâmica do déficit e da dívida pública resulta não apenas da política fiscal, mas também das políticas monetária e cambial.

[1] http://www.auditoriacidada.org.br/e-por-direitos-auditoria-da-divida-ja-confira-o-grafico-do-orcamento-de-2012/#_edn4.

[2] http://www.auditoriacidada.org.br/

[3] O Gráfico 1 utiliza o conceito de setor público consolidado, algo mais amplo que governo central (Tesouro Nacional, INSS e BCB) por incluir estados e municípios. Entretanto, como a União emitiu títulos próprios para assumir a dívida de estados e municípios, a dívida e despesas com juros do governo central é muito próxima da despesa com juros do setor público consolidado.

[4] Uma coisa é orçamento aprovado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), que pode ser alterado ao longo do ano. Outra é a execução orçamentária, que pode ser medida pelo critério de despesas empenhadas, liquidadas (a Administração admite que tem uma obrigação) ou pagas.

[5] Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? I. O valor da dívida não tem sentido

[6] http://www12.senado.leg.br/orcamento/loa

[7] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/relatorio-mensal-da-divida

[8] http://www.tesouro.gov.br/resultados-dos-leiloes

[9] http://www3.tesouro.gov.br/divida_publica/downloads/Parte%202_4.pdf

[10] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[11] http://www.bcb.gov.br/?RESERVAS

[12] http://www.bcb.gov.br/pec/sdds/port/templ1p.shtm . O resultado fiscal da política cambial não depende apenas do diferencial entre o custo da dívida pública e a remuneração das reservas (custo de carregamento das reservas). É importante que se leve em conta o resultado do BCB com swaps cambiais e a variação do valor das reservas em moeda nacional decorrentes das oscilações da taxa de câmbio. O Quadro 52 da Nota de Política Fiscal do BCB informa esses resultados mês a mês, com defasagem de um mês http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC. O resultado da política cambial, por sua vez, é parte do resultado do BCB – superávits do BCB resultam em aportes na Conta Única do Tesouro Nacional e déficits do BCB demandam aportes do Tesouro Nacional no BCB (LRF, art. 7º).

[13] O texto de estreia deste Blog trouxe algumas considerações sobre o volume e custo fiscal dos aportes realizados pelo Tesouro Nacional no BNDES: https://bianchiniblog.wordpress.com/2015/12/15/consideracoes-sobre-o-papel-do-bndes-um-debate-desonesto-2/

[14] http://mercadopopular.org/2015/10/faca-aqui-sua-auditoria-da-divida-publica/

[15]https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/03/sobre-o-aumento-nos-juros-da-divida-publica-em-2015/