Afinal, o teto de despesas reduziu os recursos da educação e saúde?

A emenda constitucional 95/2016 introduziu o novo regime fiscal, que limitou as despesas primárias da União ao valor real de 2016 e modificou os valores mínimos a serem aplicados em manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) e ações e serviços públicos de saúde (ASPS) por 20 anos. Após meia década de sua aprovação, quais os resultados efetivamente observados?

  1. Despesas primárias reais da União

Com exceção do ano de 2020, quando a EC 106/2020 instituiu o regime extraordinário fiscal, permitindo a realização de despesas para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia da Covid-19, as despesas primárias reais da União têm se mantido no mesmo patamar desde 2015: em 2021, a despesa real foi 4,6% maior que a de 2014. A maior parte desse aumento real se deu em 2019, quando uma interpretação criativa da equipe econômica sancionada pelos órgãos de controle permitiu que uma receita extraordinária de concessões de mais de R$ 80 bilhões obtida em dezembro fosse gasta ainda naquele ano (vide item IV), resultando em despesa real 3,7% maior que a de 2016. Como o teto de despesas é calculado a partir do ano anterior, o aumento real de 2019 elevou o teto de despesas de 2021 em diante (Gráfico 1).

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

Portanto, a estabilização da despesa primária real da União teve início 2 anos antes do teto de despesas, sendo que este não impediu aumento da despesa primária real da União a partir de 2019.

  1. Despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)

Além do teto real de despesas, a EC 96/2016 também modifica, durante sua vigência, o montante mínimo que a União deve gastar com MDE: em vez de 18% da receita líquida de impostos do ano corrente, o valor real correspondente a 18% da receita líquida de impostos de 2016. Como no longo prazo a receita real de impostos tende a crescer, aumentando com isso os recursos mínimos a serem aplicados em MDE, a mudança visou a impedir que a vinculação de despesas com educação inviabilizasse o cumprimento do teto de despesas.

Como consequência do elevado patamar inicial de despesas com MDE e do teto de despesas, as despesas com MDE caíram anualmente como proporção da receita líquida de impostos, com exceção de 2020. Entretanto, somente em 2021 as despesas com MDE foram menores que os 18% da receita líquida de impostos preconizados pelo art. 212 da Constituição Federal (Gráfico 2). Ainda assim, em montante inferior a R$ 0,5 bilhão.

Fonte: STN – Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO)

Em outras palavras, embora as despesas reais com educação da União estejam em queda desde 2017, foi somente no ano passado que ficaram abaixo do mínimo estipulado pelo art. 212 da Constituição – por pequena margem. Essa distância tende a se aprofundar nos próximos anos.

  1. Despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS)

No caso das ASPS, a sistemática de aplicação de recursos era um pouco mais complexa, pois a EC 86/2015 havia estabelecido um cronograma gradual de implementação dos gastos mínimos com ASPS, de 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) em 2016 para 15% da RCL a partir de 2020. O novo regime fiscal determinou que a aplicação mínima em ASPS fosse equivalente ao valor real de 15% da RCL de 2017.

Já as despesas com ASPS foram inferiores ao valor mínimo estipulado pela sistemática anterior apenas em 2019, quando foram gastos 13,4% da RCL em vez dos 14,5% estimulados na EC 86/2015, diferença que corresponde a R$ 10,2 bilhões (valor não atualizado). Em parte, devido à queda de receitas causada pela recessão de 2020, em parte devido ao esperado aumento de despesas com saúde em uma pandemia, as despesas com ASPS foram superiores a 15% da RCL em 2020 e 2021 (Gráfico 3).

Fonte: STN – RREO

Em suma, não fosse a pandemia, o teto de despesas teria reduzido os gastos com saúde da União para valores inferiores aos mínimos estipulados pela EC 86/2015. Por essa razão, espera-se que, com o fim da pandemia, as despesas com saúde caiam abaixo do estipulado pelo art. 198 da Constituição Federal.

  1. Despesas discricionárias e sujeitas a controle de fluxo

Como a maior parte das despesas da União é obrigatória, irredutível por determinação constitucional e/ou tende a crescer vegetativamente com o envelhecimento da população, uma consequência da manutenção do patamar real das despesas primárias da União desde 2015 (vide item I) tem sido a incidência de ajuste em despesas obrigatórias sujeitas a controle de fluxo ou discricionárias, como investimentos, desde aquele ano. Como expliquei neste Blog, em 2019 isso foi um elemento fundamental dos cortes em recursos destinados às universidades federais que motivaram diversas manifestações contra o governo.

A trajetória de queda das despesas discricionárias como proporção das despesas totais foi interrompida com o aumento de despesas possibilitado pelas receitas extraordinárias de dezembro de 2019 (vide item I). O regime extraordinário fiscal, que possibilitou expansão fiscal sem precedentes, distorceu essa comparação porque a maior parte das despesas criadas foi obrigatória, como o auxílio emergencial. Em 2021, as despesas obrigatórias com controles de fluxo e as discricionárias foram 16,7% das despesas primárias da União, menor valor da série histórica, considerando que os números de 2020 foram atípicos (Gráfico 4).

Fonte: STN

Como as despesas sujeitas a controle de fluxo estão em patamares mínimos, o cumprimento do teto de despesas depende de cortes adicionais nos investimentos, adiamento de despesas para os próximos exercícios e interpretações criativas da EC 95/2016. Como neste ano o presidente é pré candidato à reeleição, é muito provável que ocorra algo similar ao que ocorreu em dezembro de 2019 para acomodar aumento de despesas típico de ano eleitoral. Infelizmente, acredito que o posicionamento dos órgãos de controle dependerá mais da popularidade do presidente que do texto constitucional.

Conclusões

i. A estabilização das despesas reais da União precede em dois anos a vigência do teto de despesas;

ii. Desde 2015, o ano de maior aumento real de despesas foi 2019, a despeito da vigência do novo regime fiscal;

 iii. Como o teto de despesas é calculado com base nas despesas dos anos anteriores, a interpretação criativa de 2019 perenizou o aumento do teto de despesas;

iv. Embora o teto de despesas tenha modificado os gastos mínimos com educação e saúde, essas despesas só ficaram abaixo do mínimo anteriormente estipulado em 2021 para educação e 2019 para saúde. Como eu havia previsto neste Blog quando o novo regime fiscal era uma proposta de emenda à constituição, as despesas com educação e saúde seriam inferiores aos mínimos vigentes anteriormente a partir do início desta década;

v. Como há poucas despesas passíveis de compressão, o teto de despesas só será cumprido com cortes adicionais de investimentos, adiamento de despesas para os próximos anos ou interpretações criativas do texto constitucional, algo que eu também havia previsto em 2016 ao concluir que o teto de despesas traria “maior ineficiência na administração orçamentária”.

Quem me acompanha neste Blog ou nas redes sociais sabe que defendo a necessidade de ajuste fiscal estrutural nas contas públicas brasileiras, em especial no que diz respeito às despesas previdenciárias, dado que servidores civis de entes subnacionais e militares não foram atingidos pela reforma de 2019. Embora eu reconheça que o teto de despesas foi importante para estabilizar expectativas após o impeachment, os números divulgados pelo Tesouro Nacional demonstram que o teto de despesas não foi necessário para que um importante ajuste fiscal nas despesas fosse iniciado em 2015. Além disso, a partir 2022 ele tende a criar diversas ineficiências na gestão fiscal. O próximo presidente, que desejo não ser o atual, deverá apresentar propostas de reformas fiscais que equilibrem a necessária revogação do teto de despesas com a necessidade de ancorar expectativas fiscais e estabilizar a relação dívida pública/PIB. Em breve, espero escrever neste Blog para comentar como uma medida provisória que promova acerto de contas entre o Banco Central do Brasil e o Tesouro Nacional pode simultaneamente diminuir a dívida pública e reforçar a autonomia da Autoridade Monetária concedida por meio da Lei Complementar 179/2021.

A tempestade perfeita: como diversas restrições fiscais convergem para os cortes na educação

Abraham Weintraub ocupa o posto de ministro da Educação há pouco mais de um mês, substituindo Ricardo Vélez Rodríguez, ex-ministro demitido em decorrência de paralisia no Ministério da Educação (MEC) devido a divergências entre apoiadores do atual presidente. Weintraub, que já demonstrou não ter noção das ordens de grandeza orçamentárias do MEC, primeiramente anunciou corte de verbas para algumas universidades que, segundo ele, tinham desempenho abaixo do esperado e promoviam “balbúrdia”. Em seguida, anunciou que os cortes ocorreriam apenas no ensino superior devido a uma suposta priorização do ensino básico (do infantil ao médio). Tal discurso tampouco se sustentou porque os cortes também atingem ensino básico. A repercussão negativa levou o Presidente e o Ministro a anunciarem que as universidades federais estariam preservadas e alguns parlamentares da base aliada disseram que o governo recuaria na decisão de cortar despesas de universidades. Posteriormente, foram desmentidos pelo governo, o que por sua vez gerou revolta de deputados da base aliada, com um deles dizendo “não admitir ser chamado de mentiroso”. Esse quiproquó impulsionou manifestações em diversas cidades do Brasil contra “cortes na educação” em 15.05.2019.

Além da evidente ausência de intimidade de Weintraub com orçamento do MEC e falhas de comunicação entre integrantes do governo e do governo com a sociedade, a dificuldade de se entender os cortes na educação é que eles ocorrem por diversas restrições fiscais simultâneas:

1. Contingenciamento de início de ano. No Brasil, somente 1,2% da receita corrente líquida é de execução obrigatória pelo Poder Executivo e isso só ocorre desde a Emenda Constitucional 86/2015. As leis orçamentárias tendem a inflar previsões de receitas para acomodar emendas de parlamentares e o ajuste é feito periodicamente pelo Poder Executivo, que pode contingenciar e remanejar parte do orçamento. Tal raio de manobra não é tão grande quanto se possa imaginar à primeira vista porque a maior parte do orçamento é de despesas obrigatórias (Vide item 5). É comum que todo início de ano o Poder Executivo contingencie despesas, liberando verbas ao longo do ano. Neste ano, o Decreto 9.711/2019 disciplina a programação financeira da União, estipulando os contingenciamentos típicos de início de ano.

2. Queda de receitas projetadas dificulta atingimento da meta de saldo primário. Desde o final de 2018 a economia brasileira tem dado sinais de desaceleração em relação a um patamar de crescimento já bastante reduzido, o que tem resultado em sucessivos cortes de projeções de crescimento econômico, queda da arrecadação (Gráfico 1) e, consequentemente, queda da estimativa de receitas de 2019 em relação ao inicialmente estimado na Lei Orçamentária Anual (LOA). Diante dessa situação precária, o contingenciamento de despesas foi rigoroso. Cabe lembrar que uma das razões que levou o Tribunal de Contas da União (TCU) a emitir parecer pela rejeição das contas de Dilma em 2015 foi aumento de despesas quando já estava claro que as receitas seriam inferiores ao estimado pela LOA.

3. Calendário eleitoral: ajuste de primeiro ano de mandato. A política fiscal costuma seguir calendário eleitoral, ou seja, as despesas tendem a aumentar em anos eleitorais e cair no primeiro ano de governos. Como parte das despesas é irredutível em decorrência da Constituição e de leis, o ajuste é desproporcional nas despesas aqui denominadas de “contingenciáveis”: despesas obrigatórias em que o Poder Executivo pode controlar a execução orçamentária e discricionárias, como investimentos. Conforme se observa no Gráfico 1, em todos os anos eleitorais (pares) houve aumento tanto da despesa primária real, quanto das despesas contingenciáveis. Com exceção de 2007, ano em que a economia brasileira crescia rapidamente com bons indicadores fiscais e externos e sem pressões inflacionárias significativas, houve queda das despesas contingenciáveis nos anos de início de governo (ímpares), que também foram anos em que o Banco Central aumentou a Selic para combater a inflação. Importante mencionar que em 2015 a série do Tesouro Nacional só mostra aumento real das despesas primárias porque no final daquele ano o governo quitou as pedaladas de anos anteriores (Vide item 5 e Gráfico 3). Se não fosse a quitação de despesas realizadas em anos anteriores, também teria havido queda real de despesas primárias em 2015.

image001

Fonte: Tesouro Nacional

4. A Emenda Constitucional 95/2016, que fixou teto de despesas primárias no valor real de 2016 e mudou as vinculações de receitas para educação e saúde, tornou o ajuste fiscal típico de início de mandato permanente após a leve expansão fiscal de 2016. Em 2018, as despesas primárias nominais foram 29,2% maiores que em 2014. Se os valores mensais forem atualizados pelo IPCA de março de 2019, o aumento real das despesas primárias nos últimos quatro anos foi de apenas 1,6%. O Gráfico 2 deixa claro que o teto real de despesas foi observado nos dois primeiros anos de vigência.

image003

Fonte: Tesouro Nacional

5. Rigidez orçamentária. Economistas costumam dar muita ênfase às vinculações de impostos educação e saúde, mas elas são apenas 40% da receita líquida de impostos dos municípios e menos que isso para estados, Distrito Federal e União. O engessamento do orçamento decorre principalmente de despesas obrigatórias e irredutíveis, como subsídios de servidores públicos (CF, art. 37, XV, art. 95, III, art. 128, §5º, I, c) e benefícios da seguridade social (CF, art. 194, parágrafo único, IV), sendo que esses últimos também devem ter valor real preservado (CF, art. 201, §4º). Além de serem a maior parte da despesa primária da União, tendem a crescer vegetativamente com promoções de servidores públicos e envelhecimento da população.

No Gráfico 3, pode-se observar crescimento praticamente ininterrupto das despesas com benefícios do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), pois o envelhecimento da população aumenta quem tem acesso aos benefícios e tempo de recebimento dos benefícios. Em 2018, a despesa com benefícios do INSS foi 48,5% superior à de 2014 ou 16,9% em termos reais.

Já as despesas de pessoal (ativos, inativos e pensionistas), embora irredutíveis, podem ser congeladas, o que explica as reduções em termos reais ocorridas em 2003 e 2015, anos de ajuste fiscal e inflação de dois dígitos. Em 2018, a despesa com pessoal foi 34% superior à de 2014 ou 5,5% em termos reais. Esse aumento ocorreu principalmente pelos expressivos aumentos salariais de servidores públicos durante o governo Temer.

Outras despesas obrigatórias também tendem a ser rígidas à baixa – a elevação no final de 2015 se deve à quitação de pedaladas realizadas em anos anteriores, explicando o aumento temporário. Em 2018, outras despesas obrigatórias foram 9,8% superiores às de 2014, queda de 13,4% em termos reais.

Já as despesas obrigatórias com controle de fluxo de caixa e despesas discricionárias tiveram aumento de apenas 2,7% em relação a 2014, queda de 19,5% em termos reais. Enquanto perdurar o teto de despesas, as sucessivas LOAs tenderão a reservar valores cada vez menores para essas despesas.

image005

Fonte: Tesouro Nacional

6. O ajuste sobre despesas discricionárias. Como o próprio nome diz, as despesas obrigatórias com controle de fluxo são obrigatórias, havendo um limite para cortes. Por essa razão, mantiveram participação praticamente estável nas despesas primárias, caindo de 10,9% em 2014 para 10,1% em 2018. Já a participação das despesas discricionárias caiu de 13,9% em 2014 para 9,5% em 2018 (Gráfico 4).

image007

Fonte: Tesouro Nacional

Embora as despesas de investimento estejam em patamar bastante deprimido e sem cobrir a depreciação desde 2016, cortes adicionais em investimentos podem resultar em violação da “regra de ouro”, que veda “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital” (CF, art. 167, III). Isso cria uma pressão para cortes adicionais em despesas discricionárias de custeio. Como já afirmei neste Blog, o novo regime fiscal é insustentável.

Conclusão

O contingenciamento de despesas na educação tem como fundamento o ajuste de despesas típico de início de ano e de mandato, agravado pelo desaquecimento econômico. Como o ajuste de início de mandato em 2015 foi seguido do congelamento de despesas primárias e diversos componentes da despesa são rígidos, os cortes têm recaído desproporcionalmente nas despesas discricionárias, muitas das quais já estão no limite. Embora o valor contingenciado represente percentual relativamente pequeno das despesas das universidades e institutos federais, os cortes ocorrem em uma base já bastante reduzida, trazendo risco real de colapso na oferta de alguns serviços. Não se surpreendam se outros ministérios entrarem em colapso. Um ajuste dessa magnitude demanda conhecimento do próprio Ministério, do orçamento e capacidade de comunicação e diálogo, virtudes que o atual ministro da educação demonstrou não ter. Com a banalização do impeachment, é importante lembrar que atos que atentem contra a lei orçamentária podem ser considerados crime de responsabilidade do Presidente da República (CF, art. 85, VI), explicando a cautela do governo.

Boas e más notícias referentes ao resultado fiscal de 2018

Hoje o Banco Central do Brasil (BCB) divulgou a Nota de política fiscal referente a dezembro de 2018. Embora esteja ocorrendo lenta e progressiva melhora dos indicadores fiscais, há que se destacar algumas vulnerabilidades:

– Em 2018, o déficit público foi de 7,1% do PIB, caindo pelo terceiro ano consecutivo (Gráfico 1), resultado tanto da diminuição do déficit primário, consequência do teto de despesas (Emenda Constitucional 95/2016), quanto da queda da carga de juros da dívida pública;
image001

– O déficit primário de 1,6% do PIB, embora o menor desde que o início da crise econômica (Gráfico 1), é preocupante, pois a margem para corte de despesas é cada vez menor e as despesas previdenciárias crescem no automático com o envelhecimento da população;

– A carga de juros da dívida pública foi de 5,5% do PIB, mais próxima ao patamar anterior ao da crise de 2015 (Gráfico 1) devido à queda da inflação, da Selic e, consequentemente da taxa de juros incidente sobre a dívida pública (Gráfico 2). Como entre dezembro de 2014 e dezembro de 2018 a dívida líquida do setor público (DLSP) aumentou de 32,6% para 53,8% do PIB, atualmente a sensibilidade da carga de juros a aumentos da Selic e/ou da inflação é muito maior do que em 2015. Um choque de inflação e juros como o de 2015 provavelmente aumentaria a carga de juros para patamares observados nas crises cambiais de 1999 e 2002 (Gráfico 1);

image003

– Os swaps, citados como vilões por diversos analistas e políticos, que em geral só se lembram de citar valores de 2015, quando houve a maior perda com swaps da série divulgada pelo BCB, resultaram em perda acumulada nos últimos doze anos de R$ 30,4 bilhões, patamar relativamente modesto comparativamente à carga de juros da dívida pública (Gráfico 3);

image005

– Tomadas em sua globalidade, as operações cambiais do BCB (swaps e reservas internacionais) resultaram em ganhos líquidos de R$ 40 bilhões nos últimos 12 anos, apenas 12,4% da soma dos resultados semestrais do BCB. Isso diz respeito à diferença entre os resultados positivos de R$ 694,3 em 8 semestres e resultados negativos de R$ 654,2 bilhões em 14 semestres. Devido ao papel intrinsecamente estabilizador das intervenções cambiais em regime de câmbio flexível, o resultado cambial, embora varie muito no curto-prazo, tende a ser modesto no longo-prazo. Isso deve ler levado em conta nas propostas de alienar parte das reservas internacionais.

Portanto, apesar da continuidade da queda do déficit primário e da carga de juros, essa melhoria de indicadores fiscais é muito frágil, pois há cada vez menos espaço para o corte de despesas discricionárias e as despesas previdenciárias tendem a crescer vegetativamente, acompanhando o envelhecimento da população brasileira. Além disso, a carga de juros pode aumentar para patamares muito elevados se o país passar por outro ciclo inflacionário, com consequente aumento da taxa Selic. Embora as operações cambiais do BCB sejam tratadas como vilãs devido à memória seletiva de alguns analistas, ao longo dos últimos as operações cambiais tiveram resultado líquido modesto. Qualquer plano de modificar o arranjo institucional da política cambial ou de venda de parte das reservas internacionais deve levar isso em conta.

A insustentabilidade da “PEC do teto de despesas”

Desde 2014, a União tem déficits primários recorrentes, principalmente devido à queda de receitas, reflexo direto da recessão. Desde o final do ano passado, as receitas têm crescido acima da inflação, mas ainda são inferiores das despesas primárias. Como se pode observar no Gráfico 1, a partir de 2015, as despesas reais da União têm se mantido estáveis, pois o aumento de dezembro de 2015 ocorreu devido a um evento extraordinário, a quitação do saldo remanescente das “pedaladas”. Portanto, a Emenda Constitucional 95/2016 (Novo Regime Fiscal), que determina o congelamento real das despesas primárias da União a partir de 2017, apenas manteve o congelamento de despesas reais da União que vinha ocorrendo desde 2015.

image001

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

Nos meses iniciais de vigência no Novo Regime Fiscal, eu já havia apontado para a precariedade do ajuste fiscal, que recaia desproporcionalmente sobre os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Como praticamente metade das despesas primárias da União é com benefícios do INSS e aposentadorias e pensões de servidores públicos, a viabilidade do Novo Regime Fiscal depende de uma reforma da previdência profunda que diminua o ritmo de crescimento das despesas, ao mesmo tempo que adie aposentadorias nos próximos anos. Mesmo após recuar nos aspectos mais regressivos e manter privilégios, o governo Temer não conseguiu aprovar a reforma, inviabilizando a cumprimento do Novo Regime Fiscal até o final da presente década.

Conforme se observa no Gráfico 2, a trajetória das despesas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e dos benefícios assistenciais (Benefício de Prestação Continuada, BPC) não teve alteração significativa nos últimos anos. As despesas de pessoal, que aumentaram menos que a inflação em 2015 e 2016, tiveram aumento real de 7% em 2017, resultado de diversos acordos que beneficiaram principalmente a elite do funcionalismo e que irão aumentar ainda mais com o aumento do teto constitucional a partir de 2019. Há ainda o incerto aumento de despesas decorrentes da Emenda Constitucional 98/2017, a qual determina a inclusão de servidores de ex-territórios nos quadros da União.

image002

Fonte: STN

Por essa razão, o ajuste tem recaído exclusivamente sobre as outras despesas obrigatórias e sobre despesas discricionárias. Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, as outras despesas obrigatórias caíram 19% e as despesas discricionárias caíram 9% em termos reais (Gráfico 2). É de se esperar que o corte de despesas obrigatórias seja cada vez mais difícil devido ao forte ajuste ocorrido nos últimos anos. O corte nas despesas discricionárias também tem uma composição ruim: nos últimos 20 meses, a despesa real com o MCMV caiu 58% e as despesas do PAC caíram quase 29%. Já as despesas discricionárias do Judiciário de Ministério Público da União tiveram queda real bem mais modesta, de 6%, sendo que, ao contrário do PAC e do MCMV, tinham sido preservadas entre 2015 e 2016 (Gráfico 3)

image003

Fonte: STN

Em outras palavras, além e não promover a reforma da previdência, o governo cede a todo momento às corporações de servidores públicos, risco que já havíamos apontado neste Blog quando o Novo Regime Fiscal era conhecido como “PEC do teto”. No ano que vem, as despesas com previdência e pessoal continuarão aumentando e será praticamente impossível acomodar esses aumentos com cortes de outras despesas, dado o patamar bastante deprimido que se encontram. A revogação da PEC dos gastos não será uma escolha política, mas uma imposição da realidade. Desde já, o debate deve ser não sobre a eventual manutenção do teto de despesas, mas qual a regra que irá substituí-lo.

Despesas com funcionalismo público no governo Temer

FHC impôs um arrocho ao funcionalismo, mas como a reforma da previdência do funcionalismo feita em seu governo foi muito tímida, a despesa com servidores públicos aumentou de 4,2% do PIB (1997) para 4,8% do PIB (2002). Diferentemente da memória seletiva das pessoas, governo Lula começou com arrocho ao funcionalismo e a reforma da previdência do funcionalismo mais importante que tivemos até hoje. Mesmo com os expressivos concursos públicos e aumentos de servidores do final da década passada, Lula terminou mandato gastando 4,3% do PIB com servidores ativos e inativos. Não nego que critico muito a política fiscal do primeiro governo Dilma, mas não houve propriamente uma gastança como gostam de dizer. Com funcionalismo foi o contrário: além de regulamentar FUNPRESP (que aumenta marginalmente o déficit no curto-prazo), tese pulso firme com funcionalismo, impondo de maneira truculenta acordos do tipo “pegar ou largar” com perdas reais para servidores. Do início do seu mandato até impeachment, a despesa com pessoal caiu para 4% do PIB. Temer é um caso bem curioso. Apesar do teto de despesas primárias, funcionalismo não tem muito do que reclamar: técnicos judiciários ganharam parte do aumento vetado por Dilma, carreiras de Estado tiveram aumentos escalonados em quatro anos, Receita Federal, Polícia Federal e carreiras jurídicas ganharam adicionais quase tão bons quanto auxílio moradia e houve acordão para manter auxílio moradia até que o judiciário ganhasse um aumento que vai repercutir em cascata em toda estrutura do funcionalismo dos três poderes e três níveis federativos. Mesmo a proposta de reforma da previdência tinha e ainda tem regras muito suaves para servidores que entraram no serviço público até 2003. Em julho de 2018, com pouco mais de dois anos de governo, a despesa com funcionalismo aumentou para 4,3% do PIB e vai aumentar mais com o reajuste do judiciário negociado para o ano que vem.

image001

Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e IBGE

A precariedade do ajuste sob o novo regime fiscal

Desde meados de 2015 tem havido relativa estabilização das despesas primárias reais da União. Os saltos ocorridos em 2015 e 2016 se devem à quitação das pedaladas em 2015[1] e quitação extraordinária de restos a pagar em 2016[2], eventos extraordinários que não irão se repetir. No caso das receitas primárias da União, depois de uma queda expressiva causada pela recessão de 2015 e 2016, há sinais de estabilização da arrecadação (Gráfico 1)

image001

Fonte: Tesouro Nacional

Os dados fiscais relativos ao primeiro semestre de 2017 pelo Tesouro Nacional[3] e as declarações mais recentes de integrantes do governo já trazem algumas pistas sobre como a Emenda Constitucional 95/16, que introduz o novo regime fiscal, com congelamento real de despesas da União, vai ser cumprida[4].

  1. Aumento da base de cálculo

A quitação extraordinária de restos a pagar no final de 2016 foi um meio de inflar o teto de despesas do novo regime fiscal, que tomou como base as despesas primárias de 2016. Recentemente, o Tesouro Nacional propôs “Aprimoramento” no tratamento das operações do Financiamento Estudantil (FIES), que na prática resultará em aumento de R$ 7,6 bilhões no teto de despesas para 2017:

“A STN promoverá revisão da apuração da base de cálculo (2016) e dos limites de despesas primárias anuais dos próximos 20 anos, em linha com a EC nº 95/2016. O total de despesas primárias de 2016 sujeitas ao NRF será alterada de R$ 1.214.384.410.569 para R$ 1.221.426.998.648, e o limite para 2017, calculado conforme o inciso I, §1º do art. 107, passará de R$ 1.301.820.088.130 para R$ 1.309.369.742.551 (…)”[5]

  1. Contingenciamento de despesas discricionárias, como investimentos

Em 2016, quase dois terços das despesas primárias da União foram com aposentadorias e pensões do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), benefício de prestação continuada (BPC), voltado para idosos e pessoas com deficiências pobres[6], e funcionalismo público civil e militar, na ativa, aposentados e pensionistas (Gráfico 2). Tais despesas são rígidas, pois benefícios previdenciários e vencimentos de servidores são constitucionalmente irredutíveis (CF, art. 194, IV e art. 37, XV) e têm dinâmica de curto-prazo própria independente da área fiscal. Como o novo regime fiscal não ataca a dinâmica dessas despesas, elas continuam crescendo vegetativamente, o que leva o ajuste a recair de maneira muito violenta sobre o terço restante dos gastos, especialmente sobre as despesas discricionárias, como investimentos: nos 12 meses encerrados em junho de 2017, as despesas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa “Minha Casa, Minha Vida” já caíram mais de 20% em relação a 2016.

image003

Fonte: Tesouro Nacional

  1. Formais mais heterodoxas de gerenciamento de despesas

A despesa de estatais não dependentes não estão sujeitas ao teto real de despesas. Por essa razão, uma forma de contornar o teto de despesas é por meio do aumento de investimentos dessas estatais[7]. Quando os investimentos executados estiverem além da capacidade financeira das estatais, a solução é dada pela pelo próprio regime fiscal, que exclui o aporte de capital em estatais não dependentes do teto de despesas (ADCT, art. 107, §6º, IV).

Para o próximo ano, a Secretária do Tesouro já sinalizou que a União pode não honrar reajustes de servidores estipulados em leis já sancionadas e publicadas[8], algo que certamente irá gerar demandas judiciais e eventuais esqueletos no futuro. Cabe lembrar que as carreiras jurídicas, auditores fiscais e Política Federal não estarão sujeitas ao contingenciamento, pois asseguraram aumento por uma “gratificação por produtividade” estendida a inativos.

  1. Corporações blindadas[9]

Quando o novo regime fiscal foi proposto, uma das reações mais violentas veio de corporações públicas receosas de perderem privilégios. Uma consequência disso foi que Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria não estão sujeitos ao teto de despesas entre 2017 e 2019 (ADCT, art. 107, §§ 7º e 8º). À época, isso se justificou para assegurar aumentos de vencimentos escalonados para os primeiros anos de vigência do novo regime fiscal. Entretanto, mesmo quando se desconsidera este argumento, é possível verificar que o limite de despesas trata Judiciário e Ministério Público de maneira diferenciada. Enquanto as despesas com o PAC e “Minha Casa Minha Vida” caíram mais de 20%, as despesas discricionárias do Poder Judiciário e do Ministério Público da União caíram cerca de um terço disso, 6,9% (Gráfico 3). Também há que se fazer menção ao autoconcedido reajuste de 16% para procuradores do Ministério Público da União, cujo impacto será incerto, pois gerará efeitos em cascata sobre MPs estaduais, Defensorias e Poder Judiciário.

image005

Fonte: Tesouro Nacional

Conclusão

Nos primeiros meses de 2017, embora o déficit primário continue elevado e sem perspectivas de redução significativa no curto-prazo, já se verifica alguma estabilização nas trajetórias de receitas e despesas da União. Também é possível avaliar como se vai se dar o cumprimento do teto de despesas do novo regime fiscal: recálculos e reclassificações de despesas do passado para aumentar o teto de despesas, compressão de investimentos a um mínimo possível, uso de estatais para realização de investimentos e medidas juridicamente questionáveis, mas que só irão gerar passivos para os próximos governos. Por outro lado, Poder Judiciário, Ministério Público e algumas corporações do Executivo praticamente estão imunes ao novo regime fiscal. Trata-se, portanto, de um ajuste precário, pois insustentável no longo-prazo, pretensamente transparente, pois depende de sucessivas modificações em séries históricas, e regressivo, pois tem poupado quem está no topo da pirâmide.

[1] https://bianchini.blog/2016/04/05/pedaladas-fiscais-e-impeachment/

[2] http://www.fazenda.gov.br/noticias/2017/janeiro/governo-reduz-em-r-37-5-bilhoes-o-estoque-de-restos-a-pagar-para-2017

[3] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/web/stn/resultado-do-tesouro-nacional

[4] As regras do Novo Regime Fiscal estão mais detalhadas em outro texto que escrevi neste Blog: https://bianchini.blog/2016/10/15/o-novo-regime-fiscal-e-as-vinculacoes-de-despesas-com-saude-e-educacao/

[5] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/0/Nota+t%C3%A9cnica+-+Discrep%C3%A2ncia+estat%C3%ADstica/a77b5354-d6ab-4bcd-887e-7519085276d8

[6] Ao discorrer sobre a reforma da previdência, escrevi sobre as regras de concessão de benefícios do INSS e BPC: https://bianchini.blog/2017/02/14/breves-consideracoes-sobre-a-pec-28716-reforma-da-previdencia/

[7] http://www.valor.com.br/brasil/4882402/planejamento-preve-execucao-recorde-do-orcamento-de-estatais

[8] http://www.valor.com.br/brasil/5055296/governo-estuda-adiar-reajustes-do-executivo-diz-secretaria-do-tesouro

[9] Quando o Novo Regime Fiscal era uma proposta de emenda constitucional já ficou bem claro que as corporações tentariam não se sujeitar ao teto de despesas: https://bianchini.blog/2016/10/08/o-primeiro-teste-da-pec-241-as-corporacoes-publicas/

Breves considerações sobre a PEC 287/16 (“reforma da previdência”)

Após a promulgação da Emenda Constitucional 95/16, que determina o congelamento de despesas primárias reais da União, a “reforma da previdência” (PEC 287/16[1]) é a principal aposta da equipe econômica, pois, sem mudanças nas regras previdenciárias, dificilmente o teto de despesas primárias será cumprido[2].

  1. Relevância das despesas previdenciárias para a União

A despesa real com pessoal civil e militar (ativos, aposentados e pensionistas) da União tiveram aumento expressivo na década passada, mas se encontram estáveis nesta década. Tanto as despesas com o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), quanto o Benefício de Prestação Continuada (BPC) têm apresentado crescimento real ininterrupto nas últimas duas décadas, não sendo afetadas pelos ciclos de ajuste fiscal As demais despesas obrigatórias tiveram aumento extraordinário em dezembro de 2015 devido à quitação das “pedaladas”. As despesas discricionárias são as mais sujeitas aos ciclos eleitorais e, não é de se surpreender que as quedas reais ocorreram em anos de início de mandatos presidenciais (1999, 2003 e 2015) – o aumento em 2010 se deve à capitalização da Petrobrás (que também aumentou as receitas primárias) e o aumento em dezembro de 2016 se deve ao pagamento extraordinário de restos a pagar, uma medida que tem como efeito prático aumentar o teto de gastos para o primeiro ano de vigência da Emenda Constitucional 95/16. (Gráfico 1)

image001

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

As despesas da União com o RGPS e BPC corresponderam a 45% das despesas primárias da União (Gráfico 2). Como essas despesas têm apresentado crescimento real ininterrupto (Gráfico 1), caso não seja realizada uma reforma profunda da previdência, dificilmente o teto de despesas primárias estipulado pela EC 95/16 será cumprido. Além disso, a continuar na trajetória atual, o ajuste fiscal terá de incidir desproporcionalmente nas despesas discricionárias, como investimentos, já bastante deprimidas pelo ajuste fiscal realizado em 2015 e, em menor medida, 2016.

image002

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

  1. Terminologias adotadas e uma visão geral sobre as regras atuais para concessão de benefícios previdenciários e assistenciais

2.1. Seguridade Social: de acordo com o art. 194 da Constituição Federal (CF), a seguridade social compreende a saúde, previdência e assistência social. A principal distinção formal entre a previdência e a assistência é que a primeira tem caráter contributivo (CF, arts. 201 e 203), enquanto a última é direcionada às pessoas sem capacidade contributiva. Essa definição estanque não impede que alguns beneficiários da previdência sejam subsidiados, ou seja, que os benefícios de algumas pessoas excedam e muito as contribuições. Não há que se falar em déficit na assistência, pois ela é de caráter não contributivo. Tanto na previdência, como na assistência, as questões essenciais são a sustentabilidade do sistema e o direcionamento dos subsídios para os grupos que realmente precisam.

2.2. Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS): são os regimes previdenciários instituídos pela União, estados, DF e alguns municípios para os seus servidores. A previdência dos servidores civis é disciplinada pelo art. 40 da CF, enquanto a previdência dos militares é regulamentada pelas leis 3.765/60, 6.880/80 (Estatuto dos militares) e Medida Provisória 2.215-10, de 2001. Há inúmeras regras para a concessão de aposentadorias a servidores públicos devido às sucessivas reformas da previdência que vêm ocorrendo. Os RPPS garantem aposentadorias (por idade e tempo de contribuição e por invalidez), licenças para tratamento de saúde, acidentes em serviço, maternidade, paternidade, pensões e auxílios (funeral e reclusão) para os dependentes dos servidores públicos. Antes da Medida Provisória 2.215-10, filhas solteiras de militares faziam jus à pensão vitalícia, benefício que atualmente somente é pago para aquelas mulheres que obtiveram o benefício antes da vigência da Medida Provisória 2.215-10 em respeito ao direito adquirido. Nos Gráficos 1 e 2, as despesas de pessoal incluem as despesas da União com seu RPPS.

Base para contribuição previdenciária: para servidores na ativa que ainda não atingiram os requisitos para aposentadoria, a totalidade dos vencimentos (exclusive gratificações eventuais, como o exercício de funções de chefia) e, para os servidores inativos, são os vencimentos que excedem o teto do RGPS, atualmente R$ 5.531 por mês. Há isenção da contribuição previdenciária para os servidores da ativa que já cumpriram com requisitos para aposentadoria. O teto de contribuição para os RPPS é o teto do funcionalismo público, cerca de R$ 33.763 por mês.

A Emenda Constitucional 41/03 abriu a possibilidade que a União, estados, Distrito Federal (DF) e municípios criassem fundos de previdência complementar para seus servidores. Para os servidores admitidos após a criação dos fundos de previdência complementar, o teto de contribuição para os RPPS é o mesmo do RGPS. Os servidores com remuneração superior a esse valor podem optar por contribuir para os fundos de previdência complementar. O fundo de previdência dos servidores públicos civis da União, FUNPRESP, foi instituído pela Lei 12.618/12.

 Alíquota de contribuição previdenciária: nenhum ente federativo pode instituir alíquota de contribuição inferior à que a União institui para seus servidores, atualmente em 11% para servidores civis e 7,5% para servidores militares. Os benefícios previdenciários são custeados pelas contribuições de servidores públicos e, diferentemente do RGPS, não há uma contribuição patronal pré-definida, mas União, estados, DF e municípios cobrem os déficits dos seus RPPS.

Requisitos para concessão de aposentadoria para os servidores públicos civis que contavam com menos de 5 anos de efetivo exercício no serviço público até a promulgação da Emenda Constitucional 41/03, os requisitos para a concessão de aposentadoria com proventos integrais são idade mínima de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres cumulada com tempo de efetivo exercício no serviço público de 35 anos para homens e 30 para mulheres. Para professores do ensino básico (infantil, fundamental e médio), a idade mínima é de 55 anos para homens e 50 anos para mulheres, cumulada com e tempo de efetivo exercício no magistério público de 30 anos para homens e 25 para mulheres. Não há idade mínima para os militares, que fazem jus à aposentadoria com proventos integrais ao completar 30 anos de serviços (Estatuto dos militares, art. 50).

Valor da aposentadoria: para os servidores públicos civis que contavam com mais de 5 anos de efetivo exercício no serviço público até a promulgação da Emenda Constitucional 41/03, há paridade com os servidores da ativa. Para os demais servidores públicos civis não há paridade entre ativos e inativos: o valor da aposentadoria equivale à média aritmética dos proventos reais (após aplicação de correção monetária) recebidos a partir de julho de 1994, descartando-se 20% dos proventos de contribuição de menor valor real. Para os militares, o valor da aposentadoria equivale ao último soldo de contribuição, havendo paridade entre ativos e inativos.

2.3. Regime Geral da Previdência Social (RGPS) cobre os trabalhadores da iniciativa privada, autônomos e servidores públicos não cobertos pelos RPPS, como os servidores públicos dos municípios que não possuem regimes próprios de previdência (em geral municípios de menor população e mais pobres). O RGPS está disciplinado na CF, arts. 194, 195, 201 e 202, bem como nas leis 8.212/91 (custeio) e 8.213/91 (benefícios) e é de competência da União. Atualmente, o teto do RGPS é de R$ 5.531 mensais, valor relativamente alto para a realidade brasileira e que cobre a totalidade dos rendimentos da maioria da população. O RGPS garante aposentadorias (por idade, tempo de contribuição e invalidez), licenças para tratamento de saúde, acidentes em serviço, maternidade, paternidade, pensões e auxílios (funeral e reclusão) para os dependentes dos segurados.

Base para contribuição previdenciária: de trabalhadores contribuintes individuais com direito à aposentadoria por tempo de contribuição, rendimentos totais até o limite de R$ 5.531 mensais; de contribuintes individuais sem direito à aposentadoria por tempo de contribuição e Microempreendedores Individuais (MEI), um salário mínimo, atualmente R$ 937; de empregadores, sobre folha de pagamentos ou receita.

 Alíquota de contribuição previdenciária: de empregados, tabela progressiva com alíquotas entre 8% e 11%; de contribuintes individuais com direito à aposentadoria por tempo de contribuição, 20%; de contribuintes individuais sem direito à aposentadoria por tempo de contribuição, 11%; de MEI, 5%[3]; de empregadores, 20% da folha de pagamentos.

Requisitos para concessão de aposentadoria: a) por tempo de contribuição: 35 anos para homens e 30 anos para mulheres; b) por tempo de contribuição para professores do ensino básico: 30 anos para homens e 25 anos para mulheres; c) por idade (urbana): 65 anos para homens e 60 anos para mulheres cumulativamente com 15 anos de contribuição; d) por idade (rural e economia familiar): 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, cumulativamente com 15 anos de contribuição. Os requisitos de aposentadoria são reduzidos para algumas categorias profissionais (aposentadoria especial)

Valor da aposentadoria: aplica-se correção monetária aos salários de contribuição recebidos após julho de 1994, descartam-se as contribuições do quintil inferior e se calcula a média aritmética dos salários de contribuição restantes. A essa média aplica-se o fator previdenciário, que varia em função da idade e expectativa de sobrevida e é atualizado anualmente, cabendo ressaltar que nenhuma aposentadoria pode ser menor que o salário mínimo. Em dezembro de 2016, 63,7% dos beneficiários do RGPS recebiam benefícios de até um salário mínimo (o INSS concede auxílios cujo valor pode ser menor que o salário mínimo), índice superior a 99% nos benefícios relativos ao setor rural.

2.4. Benefício de Prestação Continuada (BPC): um salário mínimo mensal (sem gratificação natalina ou 13º) para pessoas com deficiência ou idosos com no mínimo 65 anos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme estipulado pela CF, art. 203, V e regulamentado pela Lei 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS). De acordo com o art. 20 da Lei 8.742/93, a linha de pobreza para a concessão do BPC é renda familiar per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. O BPC não é o único benefício assistencial, convivendo com outros programas, como o Bolsa Família. O critério de miserabilidade estabelecido pela LOAS frequentemente é desconsiderado pelo Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal (STF) já o declarou inconstitucional, sem pronúncia de nulidade[4].

Os pagamentos dos benefícios do RGPS e do BPC são feitos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

  1. A demografia

Em 2016, expectativa de vida ao nascer dos brasileiros era de 75,7 anos, sendo 72,2 anos para homens 79,3 para mulheres[5]. A fecundidade, que já foi de 6,2 filhos por mulher no início dos anos 60, encontra-se abaixo da taxa de reposição populacional há uma década e, desde 2014, é menor que 1,8 filho por mulher. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que em 2060 a expectativa de vida ao nascer será de 81,2 anos (78 anos para homens e 84,4 anos para mulheres) e cada mulher terá em média 1,5 filho. Como se pode observar no Gráfico 1, desde os aos 80 a expectativa de vida dos brasileiros tem crescido acima da média mundial e a fecundidade tem caído em velocidade superior à média mundial. Na Argentina, por exemplo, a transição demográfica tem sido bem mais suave: em 1960, a expectativa de vida dos argentinos era 11 anos maior que a dos brasileiros e as argentinas tinham em média 3,1 filhos. Em 2014, a diferença de expectativa de vida havia caído para apenas 1 ano e as argentinas tinham em média 2,3 filhos, número superior à taxa de reposição populacional.

image003

Fonte: Banco Mundial e IBGE

Uma consequência disso é que o número de beneficiários da previdência tem crescido mais rapidamente que a população: entre 2000 e 2016, a população cresceu em média 1,1% ao ano, enquanto o número de beneficiários do RGPS aumentou em média 3,2% ao ano e o número de beneficiários do BPC 5,2% ao ano. Há, portanto, uma questão estrutural e pouco sensível a políticas públicas: os brasileiros estão tendo menos filhos e vivendo mais, ou seja, mantidas as regras atuais, no futuro haverá menos pessoas contribuindo com a previdência e mais benefícios previdenciários.

  1. Benefícios pagos pelo INSS

Em dezembro de 2016, o INSS pagou quase 33,8 milhões de proventos[6], sendo a grande maioria (84%) benefícios previdenciários do RGPS, seguidos pelo BPC para pessoas com deficiência (7,2%), BPC para idosos (5,9%) e por benefícios acidentários do RGPS (2,5%). Os proventos para a zona urbana correspondiam a 71,9% e os da zona rural, 28,1%.

Como se pode observar no Gráfico 4, dos benefícios pagos em dezembro de 2016, 29,9% eram aposentadorias por idade, 22,4% pensões por morte, 17,0% aposentadorias por tempo de contribuição, 9,6% aposentadorias por invalidez, 7,2% BPC para pessoas com deficiência, 5,9% BPC para idosos e 4,6% de auxílio doença. Outros benefícios, como auxílio maternidade e auxílio reclusão, correspondiam a 3,5% do total, a maior parte referente ao RGPS urbano.

image004

Fonte: INSS[7]

  1. Valor dos benefícios do INSS

 

Em dezembro de 2016, 66% dos benefícios pagos pelo INSS foi de um salário mínimo (Gráfico 5), índice que chega a 85% na região Nordeste, 84% na Região Norte e 54% no Sudeste. Entre os estados, o Maranhão é o que tem maior proporção de benefícios de 1 salário mínimo (92%) e, entre estados e DF, São Paulo é a única unidade da federação em que menos da metade dos benefícios (45%) recebe um salário mínimo. A elevada participação relativa de benefícios de um salário mínimo em parte é explicada pelo fato do salário mínimo ser o piso da maioria dos benefícios do RGPS (CF, art. 201, §2º) e o valor dos benefícios do BPC. Também contribuem para isso o fator previdenciário, que na prática não tem postergado aposentadoria, mas apenas diminuído o valor das aposentadorias, e os aumentos reais do salário mínimo nos últimos (Gráfico 6), contribuindo para que ao longo do tempo, parte dos benefícios superior a um salário mínimo se tornassem de um salário mínimo.

image005

Fonte: INSS

image006

Fonte: BCB e IBGE

Mesmo se levarmos em conta o valor dos benefícios pagos (Gráfico 7), contatamos que quase metade das despesas do INSS é com proventos de até um salário mínimo. Como 45% das despesas primárias da União é com RGPS e BPS (Gráfico 2), conclui-se que mais de um quinto das despesas primárias da União está atrelado diretamente ao salário mínimo. Por essa razão, é bastante provável que, mantidas as regras atuais da previdência e da assistência social, a EC 95/16 dificulte aumentos do salário mínimo.

image007

Fonte: INSS

Quase 100% dos benefícios assistenciais rurais e urbanos e 99,3% dos benefícios do RGPS rural (99,0% em valor) são de até um salário mínimo. Por outro lado, o RGPS urbano responde por mais de 99,2% dos proventos superiores a 1 salário mínimo. No RGPS urbano, 27,1% dos benefícios (51,1% em valor) é superior a 2 salários mínimos (Gráfico 8).

image008

Fonte: INSS

  1. Receitas e despesas do RGPS

 

O RGPS tem sido deficitário nos últimos 20 anos, ou seja, suas despesas foram superiores à arrecadação de contribuições de segurados e empregadores. A recessão que ocorre desde meados de 2014 aumentou o déficit da previdência, que chegou a 2,4% do PIB no ano passado (Gráfico 9). Além da recessão, que diminuiu a arrecadação real do RGPS, contribuem para o aumento do déficit os aumentos nominais do salário mínimo (Gráfico 6) e demais benefícios previdenciários acima da taxa de crescimento nominal do PIB e o envelhecimento da população (Gráfico 3). Por fim, nota-se que as desonerações de contribuições sociais sobre folhas de pagamento realizadas no início da década não tiveram impacto significativo sobre a arrecadação previdenciária.

image009

Fonte: STN e IBGE

 

Entre 2009 e 2015, o RGPS dos trabalhadores urbanos foi superavitário, voltando a ser deficitário em 2016 em decorrência da recessão. Já o RGPS dos trabalhadores rurais é estruturalmente deficitário, o que decorre principalmente da arrecadação irrisória, inferior a 0,2% do PIB (Gráfico 10). Isso ocorre porque, para a obtenção de aposentadoria rural de pessoas que trabalhem em regime de subsistência, não é necessária comprovação de contribuição para o RGPS: basta a pessoa provar, por meio de documentos como declarações de sindicato e notas de produtor rural, que trabalhou 15 anos em atividade rural. Neste sentido, o RGPS rural está bem próximo da assistência social, ainda mais tendo em vista que a grande maioria dos benefícios do RGPS rural é de um salário mínimo. Um argumento de quem nega a existência de um déficit da previdência é o caráter predominantemente assistencial do RGPS rural. A forma de comprovação de trabalho rural tem levado a uma grande judicialização: em 2015, 30,2% das aposentadorias rurais foram concedidas em decorrência de decisões judiciais, índice que chegou a 58% nas aposentadorias por invalidez.

image010

Fonte: STN e IBGE

 

Deve-se ter em mente que não é exclusividade dos trabalhadores rurais ter uma previdência subsidiada. Uma das características essenciais dos regimes estatais de previdência é a solidariedade (CF, art. 40) e a existência de condições especiais para trabalhadores de baixa renda (CF, art. 2012, §§ 12 e 13), como as dos MEIs e contribuintes individuais. A própria diferenciação de idade e tempo de contribuição entre homens e mulheres configura subsídio cruzado: embora os homens vivam 7 anos a menos que as mulheres, é exigido tempo de contribuição maior para os homens. Importante, neste caso, é avaliar se os subsídios são realmente direcionados para quem necessita.

Ainda mais importante que o déficit do RGPS nos últimos anos são as projeções atuariais. Mantidas as regras de concessão de benefícios e as tendências demográficas, haveria um aumento progressivo do déficit do RGPS, que chegaria a 9,24% do PIB em 2060[8]. Alguns autores argumentam que essas projeções atuariais não levam em conta a possibilidade de aumento da formalização do trabalho e, com isso, arrecadação previdenciária, ou de que aumentos de produtividade gerem aumento maior que o projetado no PIB. Embora isso possa ocorrer, projetar um aumento substancial de produtividade é uma hipótese ainda mais frágil que as atualmente utilizadas, principalmente tendo em vista que a transição demográfica é um dado estrutural que dificilmente sofrerá mudanças significativas em relação ao que hoje é projetado para o futuro.

 

  1. A tese do superávit

Nos debates sobre o déficit do RGPS, é muito comum que a tese de Denise L. Gentil[9] seja citada explícita ou implicitamente. Em apertada síntese, a pesquisadora resgata o art. 195 da CF, que outorga competência à União para instituir contribuições sociais para o financiamento da seguridade social. Além das contribuições de trabalhadores e empregadores (Gráfico 9, barra azul, Gráfico e 10, barras azul e verde), a União pode instituir contribuições sobre receita ou faturamento (PIS e COFINS) e lucro líquido (CSLL) para complementar o financiamento à seguridade social. Como a arrecadação dessas contribuições sociais supera o déficit do RGPS e o pagamento dos benefícios assistenciais da LOAS (Gráfico 11), o discurso do déficit da previdência seria falacioso.

image011

Fonte: STN e IBGE

É de se notar, entretanto, que seguridade social é um conceito mais amplo que inclui previdência, assistência social e saúde. Portanto, não há incompatibilidade entre déficit no RGPS e superávit da seguridade social.  Quanto maior o déficit do RGPS, menores os recursos disponíveis para o financiamento da assistência social e da saúde e/ou maior a necessidade de se aumentar a carga tributária, que em 2015 foi de 32,1% do PIB e é relativamente alta comparativamente aos demais países emergentes[10].

Adicionalmente, aumentos na tributação não são neutros, afetam a distribuição de renda e diminuem a competitividade do setor produtivo brasileiro frente aos competidores internacionais. Cabe lembrar que o PIS e a COFINS, as duas contribuições sociais mais relevantes, são tributos indiretos, que pesam mais sobre a renda dos mais pobres[11] – justamente a parcela da população mais sujeita ao trabalho informal e, portanto, não coberta pelo RGPS.

Também é muito comum a menção à Desvinculação das Receitas da União (DRU), renovada sucessivas vezes e atualmente disciplinada pelo art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com redação dada pela Emenda Constitucional 93/16. Por meio deste dispositivo, até 30% da arrecadação com contribuições sociais podem ser dispendidos em outras áreas que não a seguridade social. Cabe ressaltar, entretanto, que próprio dispositivo assegura que a DRU não pode afetar os benefícios do RGPS, ou seja, independentemente da DRU, a União é obrigada a cobrir o déficit do RGPS. É importante, neste sentido, lembrar que as contribuições sociais foram o meio encontrado no final dos anos 90 e início dos anos 2000 pela União para aumentar a carga tributária sem ter de transferir parte dos tributos para os entes subnacionais, como ocorre com a maioria dos impostos. Finalmente, não há hierarquia entre a norma que outorga competência para a União instituir contribuições sociais (CF, art. 195) e a DRU (ADCT), art. 76: ambas são normas constitucionais. Logo, não há que se falar em inconstitucionalidade da DRU.

Em suma, o déficit do RGPS e dos RPPS não se deve à DRU e não é incompatível com superávit da seguridade social. Ademais, mantidas as regras atuais, o déficit do RGPS e dos RPPS tende a se agravar no tempo, exigindo cortes em outras despesas e/ou aumentos na carga tributária.

  1. RPPS

Na União, nos Estados e no Distrito Federal, a relação entre o número de servidores ativos e os aposentados e pensionistas está próxima de 1, demonstrando grande desequilíbrio entre as receitas de contribuições e as despesas com o pagamento de benefícios de seus respectivos RPPS. Em 2016, o RPPS da União teve déficit de R$ 72,5 bilhões (1,3% do PIB) e os déficits somados dos RPPS dos estados e DF foram de R$ 60,9 bilhões (1,0% do PIB). A título de comparação, naquele ano o déficit do RGPS – com número de beneficiários superior a 28 milhões – foi de 1,4% do PIB.

Importante ressaltar que esse desequilíbrio não é homogêneo entre os entes federativos: os estados criados pela CF de 88 possuem número reduzido de inativos, contrastando com os estados do sul e sudeste, onde a despesa com inativos é mais relevante. No Rio Grande do Sul, mais de 60% das despesas de pessoal é relativa ao pagamento de aposentados e pensionistas, recorde entre estados, o que contribui para inviabilizar a reposição de servidores aposentados e a dificultar o cumprimento do piso salarial do magistério[12]. A União e alguns entes subnacionais, como o estado de São Paulo, regulamentaram previdência complementar. Os servidores admitidos após a regulamentação desses fundos de previdência complementar estão sujeitos ao teto do RGPS. Como nos RPPS as contribuições dos servidores financiam as aposentadorias e pensões, é de se esperar que em primeiro momento o déficit dos RPPS aumente (os novos servidores contribuem pelo teto do RGPS e maioria de inativos e pensionistas recebe benefícios superiores ao teto do RGPS) para depois diminuir. Deve-se ter em mente que a heterogeneidade de conceitos adotados pelos entes subnacionais pode significar que os déficits dos RPPS dos entes subnacionais sejam ainda maiores que os informados[13]. Finalmente, devido à ausência de um teto de benefícios para a maior parte dos inativos e pensionistas, os RPPS contribuem para aumentar a concentração de renda no Brasil:

(…) o grupo dos funcionários públicos cujas aposentadorias e pensões excedem o teto representa menos de 5% dos beneficiários, mas se apropria de quase 20% dos recursos distribuídos pela Previdência.(…) No RPPS, o efeito sobre a desigualdade da fração dos benefícios que ultrapassa o teto vigente para o setor privado é suficiente para anular os efeitos progressivos de todas as contribuições para a Previdência dos setores público e privado somadas. Tal efeito negativo sobre a desigualdade persistirá durante décadas, posto que a convergência entre os dois regimes ocorrerá apenas no longo prazo.[14]

 

  1. A PEC 287/16

 

A PEC 287/16 “(reforma da previdência”) tem o objetivo declarado de trazer sustentabilidade financeira para o RGPS, os RPPS e para o BPC, adequando-os à transição demográfica. A PEC 287/16 também visa a unificar as regras para concessão de aposentadoria dos RPPS  e dos RGPS dos servidores civis, d o setor urbano e rural, homens e mulheres, além de reformular o BPC. Os servidores públicos militares não estão contemplados pela PEC 287/16, pois a previdência dos militares é disciplinada por normas infraconstitucionais.

Pela reforma proposta, a aposentadoria poder-se-ia se dar em caso de incapacidade permanente para o trabalho (CF, art. 40, I para os RPPS e art. 201, I para o RGPS), voluntariamente após o atingimento cumulativo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para a previdência (CF, art. 40, III para os RPPS e art. 201, § 7º para o RGPS) e, no caso de servidores públicos civis, compulsoriamente aos 75 anos de idade (CF, art. 40, III). Ficam extintas as aposentadorias especiais, como a de professores do ensino básico (CF, art. 40, §4º e art. 201, §1º), exceto para pessoas com deficiência e pessoas “cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que efetivamente prejudiquem a saúde, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupações”, tal como definido em lei complementar. Para pessoas com deficiência e quem desenvolve atividades prejudiciais à saúde, pode-se reduzir em até 10 anos a idade mínima e em até 5 anos o tempo de contribuição (CF, art. 40, §4º-A e art. 201, §1º-A).

O valor da aposentadoria seria de 51% da média real dos salários de contribuição, acrescido de 1% por ano trabalhado, até o limite de 100% (CF, art. 40, §3º para os RPPS e art. 201, §7º-B para o RGPS). Assim, uma pessoa que se aposentar com 65 anos e 25 anos de contribuição teria rendimentos correspondentes a 76% (51% + 25%) da média de salários de contribuição e a aposentadoria integral somente seria concedida a partir de 49 anos de contribuição. As aposentadorias por incapacidade permanente decorrentes de exclusivamente de acidente de trabalho corresponderiam a 100% das médias reais de salários de contribuição (CF, art. 40, §3º-A para os RPPS e art. 201, §3º-A para o RGPS). O valor das pensões por morte seria de 50% do valor da aposentadoria, acrescido de 10% por dependente, até o limite de 100% (CF, art. 40, §7º para os RPPS e art. 201, § 16 para o RGPS). O piso de um salário mínimo para os benefícios do RGPS seria mantido.

Além disso, ficam vedados o acúmulo de mais de uma aposentadoria, mais de uma pensão por morte ou aposentadoria e pensão por morte (CF, art. 40, §6º e art. 201, § 17), podendo o segurando optar pelo benefício de valor mais alto. A medida visa a eliminar uma distorção que torna o sistema mais regressivo, pois “em 2014, 2,4 milhões de beneficiários acumulavam aposentadoria e pensão, sendo que 70,6% desses situam-se nos três décimos de maior rendimento domiciliar per capita brasileira, denotando a falta de progressividade desse benefício. O percentual de pensionistas que acumulavam pensão e aposentadoria cresceu de 9,9%, em 1992, para 32,4%, em 2014”.

O BPC, atualmente concedido para idosos pobres com no mínimo 65 anos, passa a ter a idade mínima aumentada em 1 ano a cada 2 anos, contados a partir da promulgação da emenda constitucional (PEC 287/16, art. 19), até chegar a 70 anos. Além disso, o critério de pobreza para a obtenção do benefício, que atualmente é de renda familiar per capita inferior a um salário mínimo, deve ser regulamentado em lei. Por fim, o BPC para idosos e pessoas com deficiência deixaria  ter como o piso o salário mínimo.

A PEC 287/16 também prevê regra de transição para os homens com 50 anos ou mais e as mulheres com 45 anos ou mais na data da promulgação da emenda constitucional. Essas pessoas terão direito à aposentadoria quando atingirem os requisitos de idade e tempo de contribuição atualmente em vigor e um tempo de contribuição adicional de 50% sobre o que faltava para atingir o tempo de contribuição mínimo na data de promulgação da emenda constitucional – isso também é válido para professores, policiais e trabalhadores rurais e policiais. Para trabalhadores rurais, o tempo de trabalho comprovado até a data de promulgação da emenda constitucional será considerado equivalente ao tempo de contribuição.

Além disso, cada vez que a expectativa de sobrevida da idade mínima de aposentadoria aumentar 1 ano, a idade mínima de aposentadoria também aumentará em 1 ano (CF, art. 40, §22 e art. 201, §15). Em 2015, a expectativa de sobrevida aos 65 anos era de 18,4 anos e naquele ano se projetava que em 2060 a expectativa de sobrevida será de 21,2 anos. Desse modo, mantidas as atuais tendências demográficas, a idade mínima de aposentadoria aumentará para 67 anos em 2060. A medida visa a evitar a necessidade de novas rodadas de reforma da previdência no futuro – como tem ocorrido desde o final dos anos 90.

APEC 287/16 também transfere da Justiça estadual para a Justiça Federal a competência para as causas previdenciárias relativas a acidentes de trabalho, tornando a Justiça Federal competente para conhecer de todas as demandas de natureza previdenciária (CF, art. 109).

  1. PEC 287/16: prós

Devido à transição demográfica pela qual passa a sociedade brasileira, é imprescindível que ocorra uma reforma da previdência, pois, mantidas as regras atuais, os déficits do RGPS e dos RPPS reduzirão a capacidade do Estado ofertar serviços públicos, além de exigir uma carga tributária cada vez mais elevada – neste sentido, nunca é demais recordar que a carga tributária brasileira é regressiva e relativamente alta para um país com o nosso nível de renda per capita.

Segundo o INSS, em 2015, a média de idade de concessão de aposentadorias por idade foi de 60,8 anos, contra 54,7 anos nas aposentadorias por tempo de contribuição. Frequentemente se afirma que a aposentadoria por tempo de contribuição visa a contemplar as pessoas mais pobres, que começam a trabalhar mais cedo. Embora seja verdade que os mais pobres comecem a trabalhar mais cedo, deve-se reconhecer que as pessoas mais pobres estão mais sujeitas à informalidade e ao desemprego, ou seja, difícilmente conseguem se aposentar por tempo de contribuição. Há também um componente regional indesejado, pois a regra atual favorece os estados mais ricos do centro sul com maiores índices de formalização e onde também estão concentrados os beneficios superiores a 1 salário mínimo:

As regiões do Brasil onde se começa a trabalhar mais cedo são também aquelas em que as pessoas levam mais tempo para se aposentar. No Norte e Nordeste, 78,5% e 74,2% das aposentadorias contabilizadas pela Previdência no mês de junho foram pagas a quem deu entrada no benefício por idade, com mais de 65 anos, no caso dos homens, e mais de 60 anos, para as mulheres. No Sudeste, por exemplo, a principal modalidade é o tempo de contribuição – em que a idade média de entrada é de 54,7 anos -, que responde por 66,4% do total de aposentadorias. (…) No Nordeste, 74% dos benefícios previdenciários, que incluem, além das aposentadorias, categorias como auxílio-doença, valem até um salário mínimo, proporção que cai a 34,3% no Sudeste.[15]

O requisito de idade mínima de 65 anos é inspirado nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), organização na qual todos os países-membro possuem renda per capita mais elevada que a brasileira, sendo a maioria países desenvolvidos. Em 2017, a expectativa de vida ao nascer do Brasil é de aproximadamente 76 anos, 4 a menos que a média da OECD, cuja renda per capita é maior que o dobro da brasileira (Gráfico 12). Deve-se ter em mente, entretanto, que, devido às regras de transição, a idade mínima de 70 anos estará totalmente em vigor em uma década, quando a expectativa de vida ao nascer dos brasileiros deverá ser superior a 78 anos no Brasil. Em outras palavras, a PEC 287/16 propõe uma idade mínima relativamente alta se levarmos em conta as diferenças de expectativa de vida do Brasil e dos países ricos, mas não tão mais alta quanto parece à primeira vista.

image012

Fonte: OECD e Banco Mundial

 

O grande problema brasileiro é que poucos países passaram por uma transição demográfica tão intensa: comparados aos países desenvolvidos, temos a renda per capita do início dos anos 50, expectativa de vida de meados dos anos 80, fecundidade da década passada e atualmente gastamos com previdência quase a mesma proporção do PIB que eles gastam (Gráfico 13).

image013

Fonte: OECD e Banco Mundial

 

Ademais, a previdência brasileira possui diversas regras que atuam para aumentar a concentração de renda, como os valores elevados de aposentadorias de servidores públicos, a possibilidade de acúmulo de aposentadorias e pensões e as aposentadorias por tempo de contribuição, o que beneficia desproporcionalmente o topo da pirâmide. Neste sentido, a reforma da previdência atuaria para tornar o Estado brasileiro mais progressivo.

  1. Quatro críticas

11.1 Ela não inclui servidores públicos militares, cuja previdência possui regras ainda mais generosas que a dos servidores públicos civis, não havendo sequer uma idade mínima e, dado o tempo de contribuição, aposentadorias antes dos 50 anos não são incomuns. Em 2016, o déficit da previdência dos militares foi de R$ 34,1 bilhões (0,5% do PIB), 44,1% do déficit da RPPS da União[16];

11.2 Não há estimativa, para o Brasil, das diferenças de expectativa de vida rural e urbana[17], embora a experiência internacional aponte para expectativa de vida menor na zona rural. Ademais, a exposição de motivos da PEC 287/16 afirma que o trabalho rural não seria desgastante como outrora sem apresentar comprovação empírica.

11.3 Da mesma maneira que habitantes das zonas rurais vivem menos que os das zonas urbanas, pessoas pobres possuem expectativa de vida abaixo da média. Ao estabelecer uma idade mínima de 70 anos para a obtenção do BPC, o benefício estará inacessível para milhões de idosos pobres, que atualmente fazem jus ao benefício aos 65 anos e recebem o BPC por 4 anos em média[18]. A principal justificativa para o aumento da idade mínima para recebimento do BPC é que, se a idade fosse a mesma do RGPS, não haveria incentivo para que as pessoas contribuíssem para o sistema. Entretanto, em dezembro de 2016 apenas 1,9% da arrecadação do RGPS veio de contribuintes individuais e 95,8% de empresas e entidades equiparadas. Além disso, contribuintes da previdência tem acesso não apenas às aposentadorias, mas também a pensões e auxílios.

11.4 A última crítica não é específica à PEC 287/16, mas a um padrão de interpretação jurídica extremamente regressivo e que se encontra enraizado em decorrência do patrimonialismo do Estado brasileiro: a noção de direito adquirido, cláusula pétrea da Constituição de 88. Ao longo de décadas, o Estado brasileiro concedeu privilégios para algumas categorias de servidores públicos e hoje todo tipo de absurdo do passado está albergado pelo respeito ao direito adquirido, roupagem jurídica elegante para a boa e velha manutenção do status quo.

Conclusões

A PEC 287/16 se propõe a modificar profundamente as regras da previdência e assistência social. Como reforma da previdência, a PEC 287/16 é positiva por tornar o sistema sustentável, eliminar a necessidade de ajustes futuros e eliminar algumas distorções extremamente regressivas como o acúmulo de aposentadorias e pensões. Os requisitos de idade e de tempo de contribuição propostos são um pouco mais rígidos do que demanda a realidade brasileira. Isso reflete não apenas uma estratégia de negociação que visa a ancorar o processo de barganha política e preservar alguma margem para relaxar os requisitos de aposentadoria, mas também é um meio de preservar os direitos adquiridos, que muitas vezes são a roupagem jurídica de privilégios, das gerações antigas. Em outras palavras, a reforma da previdência é severa com as gerações futuras para poder preservar regras generosas para quem hoje está aposentado ou em vias de se aposentar. A PEC 287/16 se omite em relação aos militares, responsáveis por grande parte do déficit dos regimes próprios de previdência e que ainda possuem um regime previdenciário incompatível com a demografia do século XXI. Ao meu ver, o grande problema da PEC 287/16 diz respeito à aposentadoria rural, de caráter predominantemente assistencial, e à assistência social para idosos (BPC), pois ela simplesmente ignora que a expectativa de vida é menor entre a população rural e os pobres e pressupõe, sem comprovação, que o trabalho rural em regime de economia familiar não é mais desgastante que o trabalho urbano. Embora as regras atualmente vigentes para o RGPS rural e para o BPC estejam defasadas, a reforma proposta na prática tornaria inacessível para milhões de brasileiros os benefícios mais progressivos do INSS.

[1]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=703956777F893FE88E6F6393DBE24F91.proposicoesWebExterno2?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016

[2] Antes da promulgação da EC 95/16, escrevi algumas considerações sobre a PEC do teto de despesas: https://bianchini.blog/2016/10/15/o-novo-regime-fiscal-e-as-vinculacoes-de-despesas-com-saude-e-educacao/

[3] http://www.previdencia.gov.br/servicos-ao-cidadao/todos-os-servicos/gps/tabela-contribuicao-mensal/

[4] RE 567.985, rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 18-4-2013, P, DJE de 3-10-2013, com repercussão geral.

[5] http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/projecao_da_populacao/2013/default_tab.shtm

[6] O número de benefícios correspondeu a cerca de 16% da população brasileira em 2016, mas o número de pessoas beneficiadas é menor, pois há pessoas que recebem mais de um benefício. Além disso, os benefícios do RGPS podem ser cumulados com benefícios dos RPPS.

[7] http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-previdencia-social/

[8] https://www12.senado.leg.br/orcamento/documentos/ldo/2016/elaboracao/projeto-de-lei/proposta-do-poder-executivo/anexo-iv.6-2013-projecoes-atuariais-para-o-regime-geral-de-previdencia-social-2013-rgps-art.-4o-ss-2o-inciso-iv-da-lei-complementar-no-101-de-4-de-maio-de-2000/view

[9]http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/teses/2006/a_politica_fiscal_e_a_falsa_crise_da_seguraridade_social_brasileira_analise_financeira_do_periodo_1990_2005.pdf

[10] Para uma comparação internacional, vide: https://bianchini.blog/2016/09/26/521/ . Devido à revisão do PIB realizada pelo IBGE, os números referentes à carga tributária brasileira estão marginalmente diferentes.

[11]http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3233&catid=30&Itemid=41

[12] http://www.valor.com.br/brasil/4739641/custo-de-inativo-nos-estados-supera-30-da-folha

[13] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/01/1854085-sob-suspeita-previdencia-dos-estados-pode-ter-rombo-maior-afirma-tcu.shtml

[14] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf

[15] http://www.valor.com.br/brasil/4724615/tempo-para-aposentadoria-e-maior-no-norte-e-ne

[16] http://www.valor.com.br/brasil/4851708/com-militares-deficit-da-previdencia-de-servidores-soma-r-77-bilhoes

[17] https://www.mtholyoke.edu/~koyam20m/Urbanruraldivide.html

[18] http://jornalggn.com.br/noticia/idosos-poderao-morrer-sem-ver-aposentadoria-alerta-campello

O Novo Regime Fiscal e as vinculações de despesas com saúde e educação

Introdução

 

No início desta semana, escrevi breves considerações sobre alguns argumentos distorcidos que vêm sendo usados para defender o Novo Regime Fiscal introduzido pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241: i. a falsa ideia que a alta recente na dívida pública decorreria principalmente de elevados déficits primários, ii. a omissão de que até 2013 o setor público brasileiro produzia elevados superávits primários, inclusive para padrões internacionais e iii. a desconsideração do fato que o desequilíbrio fiscal da União decorre principalmente da queda de receitas e não de aumento de despesas; iv. a ideia que o novo regime fiscal é a única alternativa tecnicamente factível[1].

Ainda assim, não se pode negar a existência de um grave desequilíbrio fiscal devido ao descompasso entre receitas e despesas primárias. O ajuste poderia ocorrer tanto por aumento de receitas, quanto por redução de despesas ou ainda por uma combinação de ambos. Entendo que o ideal seria um ajuste fiscal que combinasse alta nos tributos sobre renda e patrimônio com corte estrutural de despesas no longo-prazo, tal como proposto pelo ex-Ministro da Fazenda Nelson Barbosa. Mas este não foi o caminho escolhido pelos parlamentares, que se opõem a aumentos na carga tributária. Neste sentido, qualquer ajuste é preferível a nenhum ajuste.

  1. Evolução das receitas de despesas primárias nos últimos anos

Como se pode observar no Gráfico 1, a recente queda no saldo primário decorre da combinação de uma queda brutal nas receitas reais, resultado da recessão iniciada em 2014, com a continuação da tendência de aumento vegetativo das despesas reais. O aumento atípico das receitas e despesas primárias em 2010 se deve à operação de capitalização da Petrobrás.

A trajetória das receitas reais possui quatro fases: i. aumento expressivo entre 1997 e 2005 devido à grande elevação da carga tributária (+7,2% do PIB) e baixo crescimento econômico (2,6% a.a.); ii. aumento expressivo entre 2006 e 2011 devido ao alto crescimento econômico (4,4% a.a.) combinado com relativa estabilidade da carga tributária (-0,2% do PIB); iii. relativa estabilidade entre 2012 e 2013 devido ao baixo crescimento econômico (2,5% a.a.) combinado com redução da carga tributária (-0,7% do PIB); iv. queda expressiva entre 2014 e 2016 devido à forte recessão (cerca de -2,3% a.a.) combinada com estabilidade da carga tributária[2]. Já as despesas reais têm trajetória de crescimento vegetativo, com breves interrupções durante os ajustes fiscais de 1999, 2003 e 2015, anos de início de governo – segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, primeiro mandato de Lula e segundo mandato de Dilma Rousseff, respectivamente. No longo-prazo, a conta apenas fecha em momentos de alta na carga tributária (FHC) ou alto crescimento econômico (Lula).

image002

Fonte: STN

O Gráfico 2 apresenta a evolução das despesas primárias reais. É fácil observar que as despesas previdenciárias (linha azul) têm crescido automaticamente e não são afetadas pelos ajustes fiscais. Entre setembro de 2015 a agosto de 2016, as despesas previdenciárias representaram 39% da despesa primária da União. Isso decorre da combinação de aumento na expectativa de vida (quase 7 anos entre 1997 e 2015), sem que houvesse mudança significativa nos requisitos de idade e tempo de serviço para aposentadoria. As despesas com pessoal ativo e inativo da União (linha vermelha), que representam 20% das despesas primárias, tiveram aumento entre 2006 e 2011 e, desde então, encontram-se relativamente estáveis em termos reais. Outras despesas obrigatórias (linha laranja), como seguro desemprego, benefícios assistenciais, subsídios etc., assim como as despesas previdenciárias, apresentam crescimento vegetativo, mas ainda assim representam pouco mais da metade das despesas previdenciárias. O salto ocorrido em dezembro de 2015 se deve à quitação das chamadas “pedaladas” realizadas até 2014. A partir de dezembro deste ano, haverá melhora no saldo primário acumulado em 12 meses em decorrência da retirada da despesa extraordinária com quitação das pedaladas da base de cálculo. Por fim, os ajustes fiscais de 1999, 2003 e 2015 recaíram principalmente sobre as despesas primárias discricionárias (linha verde), como investimentos.

image004

Fonte: STN

Dado o peso e a trajetória das despesas previdenciárias, fica claro que, sem uma reforma da previdência que ajuste os critérios para a concessão de aposentadorias ao aumento da expectativa de vida, todo o peso do ajuste fiscal recairá sobre despesas discricionárias como investimentos.

 

  1. A PEC 241

A PEC 241 estipula que, por 20 anos, a partir de 2017, a despesa primária da União poderá ser no máximo igual à despesa do ano anterior corrigida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A combinação de contenção real das despesas tende a estabilizar a linha laranja do Gráfico 1. Quando a economia voltar a crescer, a receita real, representada pela linha azul do Gráfico 1, tende a aumentar e gradualmente os saldos primários da União aumentariam até se tornarem positivos.

A PEC 241 impõe limites de despesas reais separados de maneira individualizada para Poder Executivo, Poder Judiciário, Poder Legislativo, Ministério Público da União (MPU) e Defensoria Pública da União (CF, art. 102). Adicionalmente, nos primeiros três anos da vigência do Novo Regime Fiscal, o Executivo pode compensar o estouro do teto por parte dos outros poderes por meio da redução do seu próprio resultado primário (art. 102, §7º). Essa medida visa a acomodar os aumentos escalonados já aprovados para as carreiras judiciárias, bem como mitigar a reação negativa das corporações públicas[3].Tecnicamente a medida é criticável, pois pressupõe que a atual divisão de recursos entre os poderes é adequada e dá prazo maior para que os Poderes Legislativo e Judiciário, bem como MPU e DPU, se adequem. Estudo publicado recentemente apontou que o Judiciário brasileiro custa percentual do PIB muito elevado em comparação com outros países[4]. Como as políticas públicas são executadas principalmente pelo Poder Executivo, do ponto de vista distributivo o ideal seria que o teto fosse mais brando com as despesas executadas pelo Poder Executivo e não o contrário.

O limite de despesas da PEC 241 não afeta os tributos transferidos da União para entes subnacionais em decorrência dos artigos 157 a 159 da Constituição (Fundos de participação de estados e municípios, IPI-Exportações, IOF-Ouro e parte do ITR para os municípios), as transferências da contribuição social do salário-educação (CF, art. 212, §6º), a distribuição royalties (art. 21, XIV) e o complemento do FUNDEB pela União (art. 60, V do ADCT), conforme disposto no art. 102, §6º, I. Com exceção da última rubrica, essas transferências não são despesas, mas deduções da receita da União. Mesmo que não estivessem explicitamente mencionadas no texto da PEC, tais transferências não poderiam ser afetadas pelo congelamento de despesas reais, pois afrontariam o pacto federativo. Há outras exceções: créditos extraordinários, despesas com Justiça Eleitoral (eleições são realizadas de 2 em 2 anos e não faz sentido que o teto seja em relação ao ano anterior, pois a despesa de anos ímpares é significativamente menor que a de anos pares), transferências obrigatórias derivadas de lei e despesas de aumento de capital de empresas não dependentes (a capitalização de estatais é uma despesa realizada esporadicamente e não faz sentido que entre no teto).

Para o poder ou órgão que extrapolar o limite individualizado de despesas, há uma série de restrições que operam de pleno direito (art. 104). Relativamente às despesas de pessoal, ficariam vedadas a concessão de vantagens e reajustes a servidores (I), a criação de cargos ou funções que impliquem aumento de despesas (II), a alteração de estruturas de carreiras que resultem em aumento de despesas (III), a realização de contratações (IV) e concursos públicos (IV), bem como a criação de auxílios (V). O poder ou órgão também fica proibido de criar despesa obrigatória (VI) ou aumentar as despesas obrigatórias já existentes acima da inflação (VII).

O aspecto mais controvertido da PEC é a suspensão das normas que estipulam aplicação de recursos mínimos para educação e saúde. Atualmente, a União é obrigada a gastar 18% da receita líquida de impostos com manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE). Na saúde, a aplicação mínima foi modificada pela Emenda Constitucional 86/15, a qual determinou que a União aplique 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) em ações e serviços públicos de saúde (ASPS). A EC 86/15 estabeleceu, no art. 86 do ADCT, um cronograma gradual de implementação dos gastos mínimos com ASPS, indo de 13,2% em 2016 a 15% em 2020 (Quadro 1).

Quadro 1: Mudança nas despesas mínimas com saúde e educação

Atual PEC 241 (ADCT, art. 105)
Manutenção e desenvolvimento de ensino (MDE) CF, art. 212 18% da Receita líquida de impostos Valor de 2017: 18% da Receita líquida de impostos; A partir de 2018: mínimo de 2017 corrigido pelo IPCA
Ações e serviços públicos de saúde (ASPS) CF, art. 198, §2º, I: 15% da RCL, com regra de transição (13,2% em 2016, 13,7% em 2017, 14,1% em 2018 e 14,5% em 2019) Valor de 2017: 15% da RCL; A partir de 2018: mínimo de 2017 corrigido pelo IPCA
  1. Sobre a possibilidade de remanejamento de recursos de outras áreas para saúde e educação

 

Um argumento comum entre os defensores da PEC 241 é que o congelamento de despesas reais, por ser individualizado para o Poder Executivo, não impede que as despesas reais de saúde e educação aumentem, pois que muda é a apenas aplicação mínima para saúde e educação. Embora seja formalmente verdadeiro, é improvável que isso ocorra, pois a maioria das despesas primárias, como previdência e funcionalismo, é rígida, havendo pouca margem para remanejamento do orçamento. Adicionalmente, nos primeiros anos é provável que o Poder Executivo seja forçado a absorver parte da extrapolação de teto de outros órgãos. Ademais, mesmo que a reforma da previdência seja realizada rapidamente, ela levará tempo para surtir efeito na trajetória das despesas. Desse modo, é provável que a redução das despesas mínimas com saúde e educação contribuam para o atingimento das metas fiscais. Não faria sentido suspender a atual sistemática de despesas mínimas com saúde e educação se isso não fosse necessário para o cumprimento do Novo Regime Fiscal.

 

  1. Efeitos da PEC 241

 

4.1 Efeito anticíclico inicial

 

Para 2017, o teto de despesas será corrigido em 7,2% em relação às despesas primárias de 2016 (art. 102, § 1º, II). No cenário de mercado do Relatório de Inflação do Banco Central, é esperado IPCA de 4,9% em 2017 e 4,6% em 2018[5]. Ou seja, caso as despesas atinjam o teto, uma hipótese bastante plausível dada a rigidez de despesas públicas, haveria incremento real de despesas de pouco mais de 2% em 2017 e 0,5% em 2018. Além disso, como atualmente o deflator do PIB se encontra abaixo do IPCA (em 2015 o IPCA foi de 10,7%, contra deflator do PIB de cerca de 8%), em 2017, a despesa primária crescerá tanto em termos reais, quanto como proporção do PIB. Para 2018 já se espera um crescimento do PIB maior que em 2017. Por essa razão, em 2018 as despesas teriam pequeno crescimento real, mas cairiam como proporção do PIB. É a partir de 2019 que as despesas tendem a ficar estáveis em termos reais e decrescentes como proporção do PIB.

Como visto no item 1, em anos de início de governo as despesas reais já tenderiam a cair, de modo que é a partir de 2020 que os efeitos do novo regime fiscal tendem a ser mais fortes. Entretanto, se a economia estiver em crescimento, a contração fiscal a partir de 2019 contrabalançaria a expansão fiscal de 2017-18, como deve ser uma política anticíclica.

4.2 Aumento da eficiência da política monetária e queda da taxa Selic

O teto de despesas de cada ano será corrigido pela inflação do ano anterior (art. 102, II). Por isso, nos anos em que houver queda na inflação, haverá aumento das despesas reais. Já nos anos em que a inflação aumentar, haverá queda nas despesas reais. Neste sentido, o teto de despesas irá tornar a política fiscal complementar à política monetária e, com isso, contribuir para aumentar a eficiência da política monetária e, no médio prazo, reduzir o patamar da taxa Selic, que atualmente se encontra tanto em termos nominais, quanto reais, no nível mais elevado em uma década.

4.3 Contenção do salário mínimo

Em 2015, as despesas primárias foram de R$ 1.159, sendo R$ 59,4 bilhões (5,1%) de MDE, R$ 100 bilhões (8,6%) de ASPS e R$ 479 bilhões (41,3%) de previdência e benefícios assistenciais (LOAS e BPC) que têm o salário mínimo como piso. Portanto, pelas ordens de grandeza envolvidas é fácil intuir que o salário mínimo tende a ser uma variável de ajuste essencial. Uma alternativa para que o salário mínimo não fosse tão afetado seria a desvincular o piso dos benefícios assistenciais e de esquemas subsidiados de aposentadoria (p. ex. rural, MEI) ao salário mínimo.

Devido à importância do salário mínimo como formador dos salários de base da economia, o novo regime fiscal pode afetar negativamente o rendimento da população de baixa renda e aumentar a concentração de renda. É importante lembrar que grande parte da melhora na distribuição de renda observada entre 2002 e 2014 decorreu do mercado de trabalho, com papel de destaque para a valorização real do salário mínimo[6]. Por outro lado, também deve ser reconhecido que, a partir de 2015, mesmo com a política de valorização do salário mínimo em vigor, a concentração de renda teve a primeira piora em mais de uma década[7].

 

4.4 Custeio da educação

 

4.4.1. Fontes de recursos e vinculações de despesas

 

As principais fontes de custeio da educação:

A) Destinação de pelo menos 25% das receitas líquidas de impostos dos estados, Distrito Federal (DF) e municípios e 18% da receita de impostos da União (CF, art. 212) com despesas de MDE. A receita líquida é a arrecadação de impostos de competência do próprio ente federativo acrescida das transferências de impostos recebidas e deduzida das transferências de impostos realizadas. A Constituição Federal (CF) estabelece as competências tributárias (arts. 153 a 156) e as transferências (arts 157 a 159). Os impostos transferidos a outros entes federativos são deduções à base de cálculo de MDE e as transferências de impostos recebidos integram a base de cálculo de MDE. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina aquilo que pode (art. 70) ou não (art. 71) ser considerado MDE para fins de atendimento do mínimo constitucional.

B) Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico (FUNDEB), disciplinado no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), composto por 20% dos tributos de competência estadual (ICMS, IPVA e ITCMD), dos impostos de competência da União transferidos para entes subnacionais (exceto os repasses do IOF sobre ouro) e de complementação da União para assegurar um valor mínimo por aluno (inciso V). O FUNDEB é distribuído para cada ente federativo em função do número de alunos do ensino básico (creche, pré-escola, ensino fundamental e médio) e a complementação da União visa a assegurar um valor mínimo por aluno. Para entes federativos com menor arrecadação de impostos e/ou maior número de matrículas no ensino básico, os repasses do FUNDEB são maiores que as deduções. Todos os recursos do FUNDEB devem ser aplicados em educação básica, sendo no mínimo 60% destinado à remuneração de profissionais do magistério. O saldo líquido recebido (p. ex município de São Paulo) ou transferido (p. ex estado de São Paulo) para o FUNDEB deve ser somado/subtraído às despesas com MDE para comprovação do atendimento ao mínimo constitucional.

Deve-se notar que o FUNDEB não aumenta os recursos destinados à educação, mas apenas redistribui parte deles de maneira mais equitativa. Isso porque: i. FUNDEB é composto por 20% de alguns impostos que compõem a receita líquida de entes subnacionais que, por determinação constitucional, têm o dever de aplicar 25% dos impostos em MDE; ii. O FUNDEB é totalmente vinculado a despesas de MDE na educação básica; iii. a União usa sua contribuição própria ao FUNDEB para comprovar despesas com MDE.

C) Contribuição social do salário-educação, tributo competência exclusiva da União e transferido aos entes subnacionais em função do número de alunos da rede pública de ensino (CF, art. 212, §§s 5º e 6º).

D) 75% da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural (royalties do pré-sal), conforme a Lei 12.858/13, art. 2º.

E) Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), criado pela Lei 5.537/68, e que conta, entre outros, com recursos provenientes de loterias.

Cabe lembrar que a Emenda Constitucional 93/16, que prorroga a desvinculação de receitas (DR) para a União e a estende para municípios não se aplica aos mínimos constitucionais de saúde e educação, nem às receitas que pertencem aos entes subnacionais decorrentes de transferências previstas na CF, ou seja, a DR não afeta as fontes de custeio da educação e saúde, como chegou a ocorrer na época em que a DR da União se aplicava aos impostos.

Segundo a Receita Federal do Brasil (RFB), em 2015 a arrecadação de impostos de competência de estados e municípios foi de R$ 539,1 bilhões e segundo a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a União transferiu R$ 167,2 bilhões para entes subnacionais (incluídas as deduções para o FUNDEB) e obteve receita líquida de impostos de R$ 258,6 bilhões[8]. Deduz-se, a partir de uma leitura sistemática da Constituição, que, em 2015, no mínimo R$ 223,1 bilhões da receita de impostos (3,8% do PIB) deveriam ser aplicados com MDE.

Quadro 2: Receitas de impostos e MDE (2015)

Arrecadação (R$ bi) Mínimo para MDE (%) Mínimo para MDE (R$ bi) %
Impostos dos estados 439,2 25% 109,8 49%
Impostos dos municípios 99,9 25% 25,0 11%
Impostos transferidos da União para entes subnacionais 167,2 25% 41,8 19%
Receita líquida de impostos da União 258,6 18% 46,5 21%
Total 964,9 N/A 223,1 100%

Fonte: Receita Federal do Brasil (RFB) para impostos de estados e municípios e Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

Também é importante se ter em mente que há diferenças conceituais entre MDE, função educação e despesas realizadas pelas secretarias de educação e pelo Ministério da Educação (MEC). Além disso, muitos estados e municípios determinam, em suas Constituições e Leis Orgânicas, despesas mínimas com educação superiores às do art. 212 da CF. É o caso, por exemplo, do município de do estado de São Paulo. Logo, o conceito de despesas com educação é polissêmico, e a PEC 241 altera apenas as despesas mínimas com MDE da União, que em 2015 representaram 19% das despesas mínimas com educação.

4.4.2. Os 10% do PIB para educação

A Meta 20 do Plano Nacional da Educação (PNE), aprovado pela Lei 13.005/14, é de “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5o(quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.” Embora seja uma meta bem-intencionada, a meta do PNE é muito genérica e de implementação improvável. Ao contrário dos fundos vinculados à educação e das despesas de MDE, não há determinação de quais despesas podem ser consideradas investimento público em educação pública. Além disso, a meta do PNE é global, para o somatório de despesas da União, estados, DF e municípios, de modo que é impossível a responsabilização de administradores pelo não cumprimento da Meta 20. Por ser inexequível, ainda no primeiro governo da ex-presidenta Dilma, a área econômica era contraria à meta de 10% do PIB para educação[9].

4.4.3. Fontes de custeio da educação na União

Segundo o Tesouro Nacional, em 2015 a União arrecadou R$ 425,7 bilhões em impostos (A). Desse montante, R$ 167,2 bilhões foi transferido para entes subnacionais (B+C+D+E+F+G), resultando em uma receita líquida de impostos (H) de R$ 258,6 bilhões. Dos recursos transferidos, R$ 62,4 bilhões (100% do FUNDEB e pelo menos 25% das outras transferências de impostos) deverão ser dispendidos pelos entes subnacionais com MDE na educação básica. Da receita líquida de impostos, pelo menos R$ 46,5 bilhões (18%) devem ser aplicados pela União em MDE. Além das receitas de impostos, a União teve receitas de R$ 14,8 bilhões para aplicar diretamente e transferir para entes subnacionais aplicarem os recursos em educação.

Quadro 3: Fontes de custeio da educação da União

Fontes de custeio R$ Bilhões
A Receita de impostos                               425,7
(B) IOF Ouro                                  (0,0)
(C) FPM                                (61,1)
(D) FPE                                (68,4)
(E) IPI-Exportações                                  (3,9)
(F) ITR Municípios                                  (0,8)
(G) FUNDEB                                (32,9)
H = Receitas líquidas de impostos

(A-B-C-D-E-F-G)

                              258,6
Mínimo em MDE (18% de H)                                 46,5
Salário educação                                   4,2
Outros                                 10,6

Fonte: STN

A maioria das despesas com MDE da União é com ensino superior e ensino profissionalizante não integrado ao ensino regular, refletindo as competências atribuídas no art. 211 da CF (Gráfico 3). Em 2015, a União também complementou o FUNDEB com R$ 3,8 bilhões em 2015.

 image006

Fonte: STN

Como se pode observar no Gráfico 4, desde 2001 a União aplica mais que o mínimo constitucional com MDE, que estão acima de 22% da receita líquida de impostos desde 2012 (23% acima do mínimo em 2016). Ademais, deve-se levar em conta o aumento real das despesas da ordem de 2% previsto para o próximo ano. Dessa forma, supondo congelamento das despesas reais da educação a partir de 2018, uma hipótese razoável, dada a rigidez à baixa das despesas em geral (boa parte das despesas com MDE é gasta com pessoal), é que só após um aumento real da receita líquida de impostos de cerca de 25% as despesas de MDE ficarão abaixo do mínimo constitucional atualmente vigente. Supondo um crescimento do PIB da ordem de 2,5%-3% ao ano a partir de 2018, isso irá ocorrer próximo do final dos dez primeiros anos da vigência do novo regime fiscal, quando os indexadores poderão ser revistos por lei ordinária. Também deve ser reconhecido que o novo regime fiscal preserva as transferências e a complementação para o FUNDEB, ou seja, o novo regime fiscal preserva a educação básica, de modo que o ajuste incide sobre o ensino profissionalizante e superior.

image008

Fonte: STN

 

O congelamento de despesas reais da educação terá como consequência limitar a expansão do ensino superior, algo socialmente e economicamente indesejável. Atualmente, o inciso IV do art. 206 da CF, que estipula “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais” impede que se cobre taxa de matrícula ou mensalidades em universidades públicas, conforme entendimento do STF insculpido na Súmula Vinculante 22. Durante a vigência do novo regime fiscal, uma alternativa para manter a expansão do ensino superior público seria uma emenda à Constituição que: i. mantivesse a gratuidade prevista no inciso IV do art. 206 para o ensino básico e, no ensino superior, apenas para alunos de baixa renda; ii. estipulasse que a arrecadação com as taxas de matrícula fosse destinada a um fundo especificamente destinado à expansão do ensino superior gratuito e não submetido ao novo regime fiscal.

 

4.5 Custeio da saúde

 

A Lei complementar 141/12 determina que, da receita líquida de impostos, os estados devem aplicar 12% (art. 6º) e os municípios 15% (art. 7º) em ASPS. A norma também define as despesas que podem (art. 3º) ou não (art. 4º) ser consideradas como ASPS. Até 2015, a despesa mínima com ASPS da União era a despesa do ano anterior acrescida da variação do PIB nominal. A EC 86/15 mudou a sistemática ao determinar que em 2016 a União aplicasse 13,2% da RCL em ASPS, aumentando progressivamente esse percentual até atingir 15% da RCL em 2020. Ironicamente, o aumento da vinculação de despesas a União com saúde foi um dos elementos da chamada pauta bomba, que visou a impedir o ajuste fiscal tentado por Dilma em seu segundo governo. Agora que o impeachment foi consolidado, a medida sobre nova modificação. No Gráfico 5 é possível visualizar a evolução das despesas da União com saúde em relação à RCL.

image010

Fonte: STN

Em 2014, os três níveis de governo gastaram R$ 216,2 bilhões com ASPS[10], sendo 43% desse montante realizada pela União. Neste sentido, a participação da União na saúde é mais importante que na educação básica. Como a PEC 241 irá revogar o art. 2º da Emenda Constitucional 86 e, com isso antecipar a aplicação mínima de 15% da RCL para 2017, o novo regime fiscal, comparativamente às normas vigentes, irá aumentar as despesas com saúde nos primeiros anos, para depois diminuí-las.

Devido ao fato do novo regime fiscal aumentar o valor base para despesa mínima com saúde, entendo que as restrições serão menos drásticas que aquelas previstas em estudo recente publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[11], que além disso minimiza o efeito inicialmente anticíclico do novo regime fiscal (item 4.1) e desconsidera que o novo regime fiscal pode aumentar a perspectiva de crescimento do PIB ao melhorar as perspectivas de evolução do saldo primário e oferecer ambiente mais propício para a queda da dívida pública. Não adianta manter a vinculação das despesas de saúde às receitas se o PIB se mantiver em queda.

4.6 Maior ineficiência na gestão orçamentária

 

Na sistemática atual, há um incentivo muito ruim para gestores de orçamento público: cientes de que no início do ano haverá decreto de contingenciamento de despesas, o orçamento tende a ser superestimado. No primeiro semestre a restrição costuma ser mais forte e vai sendo relaxada ao longo do ano. No final do ano, os gestores que foram mais eficientes e não empenharam todas as despesas, tendem a ter o orçamento do ano seguinte reduzido. Por essa razão, quem não quer perder participação relativa no orçamento tende a perder recursos e poder) no ano seguinte. Com a PEC 241, o teto de despesas vai se transformar em meta de despesas e os gestores visarão a gastar todo o orçamento. Se não se antecipar a essa reação mais que esperada dos agentes, a PEC 241 vai exacerbar uma das maiores ineficiências da administração orçamentária no setor público.

  1. Duração do novo regime fiscal

Embora o teto de despesas da PEC 241 dure 20 anos, no 10º ano há possibilidade de revisão dos índices de correção. Como mencionado no item 1, nos 5 primeiros anos as despesas com saúde e MDE provavelmente continuariam acima dos mínimos legais atualmente vigentes. Se a partir de então o crescimento for baixo, o novo regime fiscal será um impeditivo menor que o desempenho ruim da arrecadação. Se a economia crescer muito e o superávit primário se tornar muito alto, é possível alterar o novo regime fiscal por meio de emenda constitucional – para uma Constituição que já sofreu 93 emendas, não é uma tarefa impossível. Tampouco se pode negar que, o novo regime fiscal provavelmente irá se tornar cláusula pétrea dos mercados e será preciso muito mais que vontade e apoio político para alterá-lo.

Conclusões

 

Embora boa parte do aumento da dívida pública que vem ocorrendo desde 2014 não tenha relação com os déficits primários acumulados, a situação fiscal é grave e demanda medidas duras. Ademais, ao contrário de um discurso frequente, foi a queda real de receitas, não aumento de despesas, a principal causa da transformação de superávits em déficits primários a partir de 2014. O Novo regime fiscal, a ser introduzido pela PEC 241, não é a única alternativa econômica para o ajuste, mas certamente é superior à não realização de ajuste. Embora seja juridicamente possível que a educação e as saúde sejam poupadas dos ajustes, é improvável que isso ocorra devido à rigidez de despesas, à necessidade de acomodar os aumentos escalonados concedidos ao Poder Judiciário, MPU e DPU e, mesmo que seja realizada uma reforma da previdência efetiva, as despesas previdenciárias continuarão crescendo em decorrência do envelhecimento da população brasileira, pressionando as demais despesas. Aliás, se não ocorrer uma reforma da previdência, o novo regime fiscal está condenado ao fracasso. Entre as principais consequências do novo regime fiscal, destaco: i. política fiscal anticíclica nos primeiros anos de vigência; ii. aumento da eficiência da política monetária – e maior probabilidade de queda da Selic – devido ao caráter anticíclico da política fiscal; iii. preservação das despesas com educação básica; iv. no início da próxima década, o novo regime fiscal provavelmente irá tornar as despesas com educação superior e saúde inferiores às que o ocorreriam na sistemática atual, gerando pressões pela cobrança de taxas de matrículas em universidades federais e contribuições sociais específicas para o custeio da saúde; v. devido à vinculação de despesas da previdência e assistência social ao salário mínimo, o novo regime fiscal será um incentivo para a limitação do salário mínimo e desvinculação de despesas assistenciais do salário mínimo; vi. maior ineficiência na administração orçamentária.

[1] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/10/10/argumentos-falaciosos-sobre-a-crise-fiscal-e-o-lobby-da-pec-241/

[2] Para dados da evolução e composição da carga tributária brasileira, vide https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/09/26/521/

[3] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/10/08/o-primeiro-teste-da-pec-241-as-corporacoes-publicas/

[4] http://blogs.oglobo.globo.com/na-base-dos-dados/post/custo-relativo-ao-pib-do-judiciario-brasileiro-e-quatro-vezes-o-registrado-na-alemanha.html

[5] http://www.bcb.gov.br/htms/relinf/port/2016/09/ri201609c2p.pdf

[6] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110804_comunicadoipea104.pdf e http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicadodoipea155_v5.pdf

[7] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1675170-brasil-vive-filme-dramatico-apos-decada-de-avancos-diz-marcelo-neri.shtml

[8] Há discrepância entre os dados da RFB e da STN devido a diferentes metodologias e contabilização de receitas, mas as ordens de grandeza são similares.

[9] http://www.valor.com.br/politica/2781766/governo-apresenta-recurso-contra-10-do-pib-para-educacao e http://veja.abril.com.br/educacao/projeto-que-destina-10-do-pib-a-educacao-vai-ao-senado/

[10] http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25627%3A2015-07-23-15-23-19&catid=3

[11] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28589

Argumentos falaciosos sobre a crise fiscal e o lobby da PEC 241

No lobby pela aprovação da PEC 241 há um vale tudo argumentativo. O texto do “Economês em bom Português”[1] é exemplar dessas falácias: 1. A leitura induz o leitor a acreditar que a carga tributária sobe há duas décadas, o que não é verdade: o aumento da carga tributária se deu entre 1997 e 2005 (de 26,5% em 1996 para 33,6% do PIB em 2005) e após a crise de 2008 houve queda moderada da carga tributária, que no ano passado foi de 32,7% do PIB. 2. Entre dez/13 e ago/16, a dívida pública bruta teve aumento de R$ 1,28 trilhão, indo de 51,7% para 70,1% do PIB – uma trajetória claramente insustentável. Desse montante, R$ 203 bilhões, menos de 16%, decorre do acúmulo de déficits primários no período. Portanto, esse salto argumentativo dos déficits primários para a dívida pública é mentiroso; 3. Parte desse déficit primário de R$ 203 bilhões se deve à quitação de pedaladas fiscais ocorrida durante o segundo governo Dilma – em 2015, quase metade do déficit primário se deve à quitação de pedaladas de anos anteriores; 4. Aliás, até 2013 o setor público brasileiro produzia elevados superávits primários e, a partir de 2014, o déficit primário do setor público brasileiro não é muito diferente do que vem ocorrendo com outros países emergentes[2]. Com isso, não quero dizer que não exista um grave problema fiscal, mas apenas que a política fiscal e as pedaladas são quase nada para explicar o problema, que está muito mais relacionado à política cambial (acúmulo de reservas com elevado custo de carregamento e, em menor medida, prejuízos com swaps cambiais) e monetária. Uma discussão séria não se faz comparando as finanças públicas com economia doméstica, mesmo porque famílias não fazem política cambial e monetária.

Retificação em relação ao texto inicialmente postado: os limites da PEC dizem respeito à União e preservam as principais transferências a estados e municípios. A PEC afeta entes subnacionais pela revogação do art. 2o da EC 86/15, segundo qual a União contribuiria com recursos para custeio da saúde de estados e municípios, mas não implica congelamento de despesas reais dos entes subnacionais.

[1] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/por-que-economes-em-bom-portugues/2016/10/1820874-entenda-por-que-o-brasil-precisa-da-pec-do-teto.shtml

[2] http://www.imf.org/external/ns/cs.aspx?id=29