Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? III. As supostas irregularidades encontradas

Contexto histórico da proposta de auditoria da dívida externa

Durante os anos 70, os bancos centrais de países avançados praticaram taxas de juros baixas e frequentemente menores que a inflação para tentar aquecer a economia e sair da estagflação na qual se encontravam. Como as taxas de juros apresentavam tendência de queda, diversos países periféricos, incluindo as nações então socialistas, passaram a tomar empréstimos com taxas de juros flutuantes, tais como a London Interbank Offer Rate (LIBOR). Isso parecia extremamente vantajoso no contexto de taxas de juros baixas dos anos 70, até que, em 1979, o Federal Reserve, banco central norte-americano, subiu os juros para patamares sem precedentes. Além de causar uma recessão global, essa alta de juros tornou excessivamente oneroso o serviço da dívida externa e, por essa razão, diversos países da América Latina, Leste Europeu África declararam moratórias. Em 1988, quase 90% da dívida externa era pública e as reservas internacionais eram de pouco mais de 9 bilhões de dólares.

É neste contexto histórico que deve ser interpretado o art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual determina o “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Quando a Constituição Federal foi promulgada, o Brasil se encontrava em plena crise da dívida externa. No início dos anos 90, a dívida externa pública foi renegociada no âmbito do Plano Brady e na década passada o setor público acumulou mais de 300 bilhões de dólares em reservas, de modo que, atualmente, o setor público brasileiro é credor líquido externo. Ademais, diferente dos anos 80, atualmente a maior parte da dívida externa é privada, algo já tratado neste Blog[1].

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Fonte: BCB (séries 3564, 3566 e 3545)

Devido à renegociação e melhora significativa no perfil do endividamento externo, entendo que o mandamento do art. 26 do ADCT perdeu a eficácia, embora ainda não tenha sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na questão na ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 59. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública de 2010 também concluiu que o objeto da auditoria da dívida externa perdeu importância e, diante da ausência de fundamentos concretos de irregularidades no processo de renegociação da dívida externa, a contratação e auditoria externa não foi recomendada:

“Acreditamos que o mecanismo de auditoria não teria sido hoje indicado no âmbito dos trabalhos desta Comissão, até mesmo porque seu objeto perdeu a importância que teve 20 anos atrás, com a solução satisfatória posterior da crise da dívida externa e nenhuma indicação de recrudescimento recente de problemas nessa área. Acresça-se aos argumentos acima o fato de que diversos expositores, inclusive o representante do TCU, especificamente perguntados, disseram desconhecer qualquer indício de ilegalidade ou comportamento suspeito de agentes públicos nos períodos em que observaram ou participaram do processo de contratação e de renegociação da dívida pública. Aqueles que levantaram críticas ao processo de endividamento e aos termos acertados nas sucessivas renegociações não ofereceram à CPI elementos que fundamentassem acusações concretas contra procedimentos ou pessoas (…) Pelas razões expostas acima, não nos inclinamos a sugerir a contratação de auditoria externa para esse fim.”[2]

Ainda assim, a Auditoria Cidadã menciona frequentemente a CPI da dívida pública, dizendo que “A CPI identificou sérios e vários indícios de ilegalidades do endividamento externo e interno (…)”[3]O que eles omitem é que as supostas ilegalidades não constam do relatório final da CPI.

As principais ilegalidades apontadas pela Auditoria Cidadã:

– Boa parte da dívida atual decorre da obscura e questionável dívida da ditadura (ou seja, um governo ilegítimo), com clausulas ilegais e sem documentação;

É verdade que antes da ditadura militar as dívidas pública e externa tinham valor pouco significativo – em 1965, a dívida federal interna era de 0,5% do PIB. Portanto, grosso modo pode-se dizer que as dívidas surgiram durante o governo militar. Ainda assim, o fato da dívida ter sido contratada por um governo ilegítimo não é apto a torna-la nula, pois se admite a recepção de leis e atos normativos realizados durante o governo militar, desde que não sejam incompatíveis com a atual Constituição.

Adicionalmente, poucos especialistas em finanças públicas irão discordar que, quando a Constituição de 1988 foi promulgada, o Estado brasileiro se encontrava praticamente insolvente. Em decorrência dessa crise fiscal, nos primeiros anos após a promulgação da Constituição Cidadã, a dívida pública interna e externa foi repactuada. Primeiramente isso ocorreu com a dívida interna: em decorrência das medidas de redução da liquidez (“confisco”) e troca compulsória de indexadores da dívida federal interna do Plano Collor, houve redução de 82,5% da dívida em poder do público em 1990[4]. Ainda no início dos anos 90, a dívida externa foi renegociada em decorrência do Plano Brady e o trecho citado do relatório da CPI da dívida pública deixa claro que não foram encontradas irregularidades neste processo de renegociação. Portanto, a dívida pública brasileira – interna e externa – já foi renegociada nos primeiros anos da ordem constitucional vigente e atualmente é composta exclusivamente de títulos emitidos durante o regime democrático.

– Utilização de juros flutuantes, ilegais segundo o Direito Internacional;

A correção de contratos e instrumentos financeiros por taxas flutuantes, como a LIBOR e a taxa de Depósito Interfinanceiro (DI), é prática corriqueira no mercado financeiro internacional, sendo explicitamente reconhecida pelo art. 8.6 da Convenção Internacional de Notas de Câmbio e Notas Promissórias[5]. A Convenção admite a utilização de taxas flutuantes, desde que as isso conste do instrumentos negocial, as taxas sejam publicas e não dependam do arbítrio unilateral de outra pessoa, podendo haver limitação prévia das bandas de variação para as taxas de juros[6]. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tampouco questiona a validade dessas cláusulas: “é válida a taxa Libor como indexadora dos juros remuneratórios, desde que prevista no contrato, uma vez que não decorre de imposição unilateral do credor, tratando-se de percentual flutuante conforme as variações do mercado internacional.” (REsp 164929/RS, de 14/12/2000, que reitera entendimento já adotado no REsp 11593 / RJ, de 29/03/1993).

– Aplicação de juros sobre juros (“anatocismo”, vedado pela Súmula 121 do STF);

É verdade que a Súmula 121 do STF veda a capitalização de juros, ainda que expressamente pactuada. No entanto, o próprio STF reconhece que a vedação enunciada pela Súmula 121 do STF não se aplica se houver norma especial autorizando a capitalização de juros em prazo inferior a um ano (RE 100336/PE, de 10/12/1984). Nos negócios realizados com instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) a capitalização de juros em prazo inferior a um ano é autorizada pela Medida Provisória 2.170/01, desde que expressamente pactuada (Súmula STJ 539). Em 04.02.2015, o STF decidiu pela constitucionalidade da MP 2.170/01 (RE 592377/RS). Assim como ocorre com alguns negócios bancários, a capitalização dos títulos da dívida pública interna também é disciplinada por normas especiais, o que exclui a aplicação da Súmula 121 do STF. O Decreto 3.859/01 é a norma que estabelece as características dos principais títulos da dívida pública federal[7].

– O pagamento antecipado de parcelas da dívida externa com ágio de até 70%;

A Auditoria Cidadã limita-se a fazer acusação genérica, sem apresentar indícios de irregularidades nas operações do Tesouro Nacional. Nada impede que o Tesouro Nacional realize resgate antecipado de títulos se justificadamente isso significar benefício para a administração. No caso da dívida externa, as recompras visam a melhorar o perfil de prazos e taxas da dívida[8]. Ao contrário do que a Auditoria Cidadã dá a entender, os resgates antecipados são divulgados no Relatório Mensal de Dívida do Tesouro Nacional[9] e estão sujeitos às auditorias da Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU).

– A realização, pelo Banco Central, de reuniões trimestrais com representantes de bancos e outros rentistas, para a estimar variáveis como juros e inflação, que depois são utilizadas pelo COPOM para a definição das taxas de juros (ou seja, é “colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”)

O Comitê de Política Monetária (COPOM) se reúne a cada seis semanas para definir meta para a taxa Selic, de modo a atingir a meta de inflação estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O contato com agentes do mercado financeiro ocorre porque um dos canais de atuação da política monetária – na verdade, de toda a política econômica – é pelas expectativas. Por essa razão, o BCB possui uma sistemática de coleta semanal das expectativas dos agentes econômicos e realiza reuniões periódicas para eliminar ruídos na comunicação com o público. Não se pode esquecer que o BCB também tem competência para regulamentar, fiscalizar e zelar pela estabilidade do sistema financeiro, de modo que as reuniões com instituições financeiras são inerente à atividade da Autoridade Monetária. Deve-se lembrar que a relação entre a meta da taxa Selic definida pelo COPOM e o custo da dívida pública não é tão direta como a Auditoria Cidadã dá a entender: embora a taxa Selic seja indexador direto de parcela considerável da dívida pública e influencie na formação das taxas dos outros títulos públicos federais, o custo da dívida pública é influenciado pela inflação, taxa de câmbio e expectativas, conforme já analisado neste Blog[10]. Os apontamentos quanto a possíveis conflitos de interesses existentes no relacionamento entre o BCB e as instituições financeiras podem ser de grande valia parta o aprimoramento da governança do BCB ou mesmo reforma das leis que regulam a atuação da Autarquia, mas é uma crítica vazia no âmbito de uma auditoria da dívida pública.

– A grande destinação dos recursos orçamentários para o pagamento da dívida viola os direitos humanos e sociais.

Trata-se de argumento extremamente aberto e impreciso: em tese, toda despesa pública concorre com despesas que visam à concretização de direitos humanos e sociais. Inclusive as próprias despesas sociais concorrem com outras despesas sociais – maiores gastos com ensino superior implicam menos recursos para educação básica, por exemplo. Podem colocar o nome que for, mas cancelar, anular ou reduzir a dívida pública com base neste tipo de argumento equivale a uma moratória. É exatamente isso que foi feito no Equador e é esse o objetivo da Associação na auditoria da dívida grega.

Conclusão: Por que não fazer uma auditoria da dívida? 

Mesmo discordando das teses da Auditoria Cidadã, muitos defendem a auditoria da dívida pública pela ideia de que “quem não deve, não teme”. Não se trata de medo de realização de auditoria, mas do reconhecimento que auditorias da dívida pública já são realizadas rotineiramente pela CGU e pelo TCU e que na CPI da dívida pública os argumentos da Auditoria Cidadã não foram acatados. Adicionalmente, muitos dos questionamentos apresentados pela Auditoria Cidadã podem ser encontrados em uma pesquisa nos sites do Tesouro Nacional e BCB, que mensalmente publicam dados detalhados a respeito da dívida pública e variáveis fiscais. Finalmente, mesmo que todos os auditores sejam voluntários, o atendimento aos questionamentos de auditores consome recursos humanos e financeiros não desprezíveis para fazer algo que já é feito.

Procurei demonstrar em três artigos que os argumentos da Auditoria Cidadã são frágeis:

– Cálculo incorreto da dívida pública interna e tese equivocada que o BCB é obrigado a ofertar divisas para o pagamento da dívida externa privada, erro elementar para quem se propõe a realizar auditoria;

– Soma indevida de despesas de juros com rolagem da dívida, o que dá a falsa impressão que quase metade do orçamento é direcionado para o serviço da dívida pública;

– Interpretação excessivamente ampla e fora do contexto histórico do art. 26 das ADCTs;

– Omissão de que tanto a dívida pública interna quanto a externa foram repactuadas no início dos anos 90;

– Argumentos jurídicos superficiais e que não encontram respaldo na jurisprudência.

Em razão da fragilidade dos argumentos econômicos e jurídicos, a Auditoria Cidadã não costuma ser levada a sério pelos especialistas em políticas públicas e o mercado a interpreta como ela realmente é: uma roupagem econômica e jurídica para a realização de uma moratória da dívida pública. Se a presidenta Dilma não tivesse vetado a realização da Auditoria Cidadã, o mercado teria interpretado a medida como um aumento da probabilidade de default da dívida pública, o que elevaria fortemente os juros para a rolagem da dívida. Em alguns dias publicarei o último artigo a tratar da auditoria da dívida pública, com considerações sobre as consequências da auditoria da dívida pública realizada no Equador.

[1] Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? I. O valor da dívida não tem sentido

[2]http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/53a-legislatura-encerradas/cpidivi/relatorio-final-aprovado/relatorio-final-versao-autenticada

[3]http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/11/Verdades-e-mentiras-sobre-a-divida.pdf

[4] Em 1965, a dívida federal interna representava apenas 0,5% do PIB. Fonte: http://www3.tesouro.gov.br/divida_publica/downloads/Parte%201_2.pdf

[5] https://www.uncitral.org/pdf/english/texts/payments/billsnotes/X_12_e.pdf

[6] For the protection of debtors, the Convention permits rates to vary only in accordance with provisions stipulated in the instrument and in relation to one or more reference rates published or otherwise publicly available. As a further protection, the reference may not be subject, directly or indirectly, to unilateral determination by a person who is named in the instrument at the time the bill is drawn or the note is made, unless the person is named only in the reference rate provisions. There may also be stipulated limits to the permissible variations in the interest rate. (…) Instruments with floating rates of interest 34. The Convention permits instruments to bear interest at a variable rate without loss of negotiability. Where the technique used is in accordance with the requirements of the Convention, the sum payable is deemed to be a definite sum despite the variable rate of interest. Disponível em: http://www.uncitral.org/pdf/english/texts/payments/billsnotes/Bills_of_Exchange_expl_Note.pdf

[7] As normas que disciplinam outros títulos públicos federais podem ser consultadas no site do Banco Central do Brasil (BCB) http://www.bcb.gov.br/htms/demab/CaracteristicaTitulos.pdf

[8] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/programa-de-resgate-antecipado

[9] https://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt/relatorio-mensal-da-divida

[10] No início deste mês, publiquei texto sobre os juros da dívida pública no Blog: https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/03/sobre-o-aumento-nos-juros-da-divida-publica-em-2015/

Ritmo de criação de vagas de ensino infantil foi o maior dos últimos 10 anos. E há quem acredite que a velocidade relevante é a das marginais

Como hoje São Paulo comemora 462 anos, decidi escrever sobre a cidade. Entusiastas e críticos da administração de Haddad costumam enfatizar políticas públicas de transporte e urbanismo, mas deixam de lado áreas essenciais. Sintomático disso foi um dos pré candidatos do PSDB fazer alusão à polêmica redução na velocidade máxima das marginais em seu slogan[1]. Embora reconheça a importância de alguns desses temas, entendo que pouca atenção tem sido dada aos dois principais legados da administração Haddad: o ajuste fiscal e a criação de vagas na educação infantil em ritmo acelerado. Nos três primeiros anos da administração, o município de São Paulo foi um dos entes federativos que mais reduziu endividamento. Em 2015, o ritmo de criação de vagas em creches foi o maior da série histórica. Ainda assim, muitos falam como se as principais ações da administração fossem a redução na velocidade máxima nas marginais e ciclovias. Comprometo-me a escrever um artigo sobre ajuste fiscal assim que o Banco Central do Brasil (BCB) atualizar as estatísticas fiscais regionais. Neste artigo, o assunto é a ampliação do acesso ao ensino infantil.

Um dos problemas mais graves enfrentados pelo município é o déficit de vagas na educação infantil. Em dezembro de 2015 o município de São Paulo tinha demanda não atendida de 75,2 mil vagas em creches e 3,6 mil vagas em pré-escolas. O ensino infantil é etapa de ensino de competência dos municípios (Constituição Federal, art. 211, §2º) e que, acordo com o art. 30 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), compreende as creches (crianças de até 3 anos) e pré-escolas (crianças de 4 e 5 anos), sendo o ensino obrigatório dos 4 aos 17 anos (Constituição Federal, art. 208, I). Além de facilitar o acesso ao mercado de trabalho para as mães de famílias mais pobres, estudos empíricos apontam que crianças que frequentam essa etapa de ensino possuem desempenho acadêmico mais alto e recebem maiores salários na vida adulta[2]. Por essa razão, não tenho dúvidas que educação infantil é um dos assuntos mais relevantes no âmbito da competência municipal. Em 2015, um dos maiores êxitos da administração municipal foi o aumento de 34.800 matrículas na educação infantil, sendo 32.581 (94%) em creches[3], o maior incremento anual desde que a Secretaria Municipal da Educação (SME) passou a divulgar dados de matrícula e demanda (Gráfico 1)[4]. Cabe observar que as quedas no número de matrículas em 2010 e 2011 são reflexo de mudanças na organização da rede de ensino e não devem ser interpretadas como eliminação de vagas (vide Notas F e G).

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Fonte: SME[5]

Se o ritmo de criação de vagas de 2015 for mantido neste ano, a atual administração terá criado 102,7 mil vagas, 7% a mais que a demanda registrada em dezembro de 2012. Ainda assim, a meta de zerar a demanda no ensino infantil não será atendida: nos três primeiros anos de governo foram criadas quase 70 mil vagas, ao passo que a demanda caiu de 96,2 mil para 78,8 mil. Isso ocorre porque, conforme mais vagas são oferecidas, mais famílias passam a procurar a rede municipal de ensino, sendo difícil precisar qual a demanda oculta.

É possível e provável que o déficit de vagas em pré-escolas seja eliminado ainda em 2016, pois ele é concentrado na zona sul da cidade, onde estão 7 dos 8 distritos com demanda superior a 100 vagas. No que diz respeito às creches, no ritmo atual, o déficit de vagas seria eliminado em 2,3 anos, contra 5,1 anos em dezembro de 2012. Como mencionado no parágrafo anterior, é improvável que isso ocorra: entre 2013 e 2015, houve aumento de 46,7 mil matrículas na rede municipal paulistana, ao passo que a queda na demanda foi de apenas 18,6 mil. Ainda assim, é factível que a demanda seja zerada até o final desta década, o que eliminaria um dos problemas mais graves do município de São Paulo.

Notas sobre o método utilizado

Além da série histórica de dados educacionais ser relativamente curta, diversas mudanças na organização do ensino devem ser levadas em conta para a realização de comparações ao longo do tempo:

A) Antes da LDB, as creches não eram consideradas etapa de ensino, mas apenas assistência social. Por essa razão, o o município de São Paulo passou a informar dados completos referentes a matrículas de vagas em creches somente a partir de 1999 (Gráfico 2);

B) Nos anos 90, o foco das políticas educacionais foi a universalização do ensino fundamental, que até a Emenda Constitucional 53/06 era a única etapa de ensino obrigatória, e a diminuição dos índices de repetência e evasão escolar;

C) No início da década passada, houve esforço concentrado de crição de vagas em pré-escolas municipais: as matrículas aumentaram de 208 mil em 2000 para 285 mil em 2005, incremento de 37% (Gráfico 2);

D) Até 2005, os Centros de Educação Infantil (CEI) eram informados como creches, independentemente da idade dos alunos, o que estava em desacordo com a nomenclatura adotada pela LDB, a qual define creche e pré-escola em função da idade das crianças. Desse modo, apesar do Censo Escolar mostrar queda no número de matrículas em creches de 107,7 mil para 61,4 mil, não houve eliminação de vagas (Gráfico 2);

E) Até 2006, os únicos dados disponíveis são os do Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC), com números referentes ao mês de maio. A partir de 2007, a SME divulga dados detalhados sobre matrícula e demanda com periodicidade inferior a um ano. Como há componente sazonal nas matrículas e demanda, os valores do Gráfico 2 referentes a 2007 a 2015 são do mês de junho (Gráfico 2);

F) Entre o final da década passada e início de 2014, a rede municipal de ensino realizou a transição para o ensino fundamental em 9 anos. Desse modo, crianças de 6 anos, que antes estavam matriculadas em pré-escolas, passam a estar matriculadas no ensino fundamental. Como isso ocorreu simultaneamente à redução da fecundidade e melhora nas taxas de aprovação, esse ano a mais de ensino fundamental não alterou a tendência de queda no número de matrículas na primeira etapa do ensino fundamental. A única exceção foi o início de 2014, quando a transição se completou. Isso ajuda a explicar a queda no número de matrículas em pré-escolas entre 2008 e 2012 (Gráficos 2 e 3);

G) Em 2011, houve reorganização da rede municipal de ensino, a qual passou a considerar matriculadas em creches as crianças de 4 anos incompletos, que antes eram classificadas como pré-escola[6]; Isso explica o aumento excepcional do número de matrículas em creches em 2011 e, junto com a ampliação da oferta do ensino fundamental em 9 anos, explica a redução nas matrículas de pré-escola (Gráficos 2 e 3);

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Fonte: MEC/Censo Escolar (1999-2006) e SME

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Fonte: SME

[1]http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/joao-doria-jr-lanca-pre-candidatura-prefeitura-de-sp-pelo-psdb.html

[2]https://www.researchgate.net/profile/Naercio_MenezesFilho/publication/4731339_OS_EFEITOS_DA_PRESCOLA_SOBRE_OS_SALRIOS_A_ESCOLARIDADE_E_A_PROFICINCIA_ESCOLAR/links/0fcfd51127b6ee5561000000.pdf

[3] Utilizei o número de matrículas porque isso permite comparação ao longo do tempo e evita o inconveniente de misturar vagas efetivamente criadas com vagas em processo de criação, como convênios celebrados, escolas em construção etc.

[4] http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Main/Noticia/Visualizar/PortalSMESP/Demanda-Escolar

[5] Comparação de dezembro com dezembro do ano anterior, exceto 2013 e 2014, pois em 2013 o último relatório de demanda é de outubro de 2013. Desse modo, o número de 2013 é o acumulado entre dezembro de 2012 e até outubro de 2013 e o número de 2014 inclui os dois últimos meses de 2013.

[6]http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Documentos/demanda/Nota_tecnica_demanda_publicacao_2011.pdf

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? II. O Gráfico em formato de pizza

Quando se discute a necessidade de ajuste fiscal, reformas da previdência ou mesmo o aumento das tarifas de transporte público nas capitais, é frequente que alguma pessoa, mesmo desconhecendo a Auditoria Cidadã, cite o famoso gráfico em formato de pizza em que praticamente metade do orçamento seria destinada para juros e amortizações da dívida pública. Logo, se o governo deixasse de direcionar tantos recursos para a dívida pública, seria possível aumentar despesas com previdência, subsídios ao transporte público, educação superior etc: Em 2014, o governo federal gastou R$ 978 bilhões com juros e amortizações da dívida pública, o que representou 45,11% de todo o orçamento efetivamente executado no ano. Essa quantia corresponde a 12 vezes o que foi destinado à educação, 11 vezes aos gastos com saúde, ou mais que o dobro dos gastos com a Previdência Social (…).[1] De acordo com o “Dividômetro”, em 2015, até 01/dez, a dívida consumiu R$ 958 bilhões = 46% do gasto federal[2]

A maioria dos especialistas em finanças públicas nunca deu maior atenção para o gráfico da Auditoria Cidadã porque analistas familiarizados com estatísticas fiscais costumam se lembrar de cabeça algumas ordens de grandeza: se há anos a carga tributária encontra-se entre 30% e 35% do PIB, a despesa com juros em torno de 5% do PIB, conclui-se, por meio da regra de três, que os juros representam de 15 a 20% da carga tributária – 17% em 2014 (Gráfico 1). Evidentemente que tal comparação é imprecisa, pois, embora os tributos constituam a principal fonte de receitas públicas, o Estado conta com receitas de seu próprio patrimônio (receitas originárias), tais como royalties sobre recursos naturais e dividendos de empresas estatais. Ainda assim, essa comparação simples é suficiente para que o gráfico em formato de pizza da Auditoria Cidadã não seja levado em conta, embora seja consensual que a carga de juros da dívida pública é muito alta no Brasil.

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Fonte: Banco Central do Brasil (BCB), Receita Federal (RF) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [3]

Entretanto, críticas deste tipo não levam em conta a lógica interna dos argumentos que procuramos refutar. Neste sentido, antes de passar às críticas, é necessário entender como a Auditoria Cidadã chegou a números tão impressionantes. O conceito de “orçamento executado” da Auditoria Cidadã é o de valores pagos, excluídos aqueles referentes a restos a pagar[4]. Conforme se pode ver nos Gráficos 1 e 2, as despesas com a dívida pública teriam correspondido a 45% dos pagamentos em 2014 e 42% em 2015 (a diferença com o “Dividômetro” se dá porque o valor do Gráfico 2 já leva em conta o mês de dezembro de 2015).

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Fonte: Senado Federal

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Fonte: Senado Federal

Diferentemente das imprecisões no cálculo da dívida pública, algo já tratado neste Blog[5], os percentuais de despesas públicas referentes a juros, amortizações e refinanciamentos da dívida apresentados pela Auditoria Cidadã estão corretos e são facilmente encontrados no site do Senado Federal[6]. Embora os valores estejam corretos, a comparação entre os pagamentos com juros, amortizações e refinanciamentos e as demais despesas não tem significado prático. O aspecto-chave para se entender a falha no raciocínio da Auditoria Cidadã é que boa parte do orçamento do governo central também é composta de receitas financeiras, como pode observar no Gráfico 4.

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Fonte: Senado Federal

Isso ocorre porque, devido à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), art. 5º, § 1º, “Todas as despesas relativas à dívida pública, mobiliária ou contratual, e as receitas que atenderão, constarão da Lei Orçamentária Anual”. Ou seja, devem constar do orçamento tanto as emissões de títulos que aumentam a dívida pública, quanto emissões que não a alteram (p. ex. refinanciamento de principal). Por exemplo, para pagar um título de R$ 1 milhão que vence em uma semana, o Tesouro Nacional emite hoje um título de R$ 1 milhão, o que resulta simultaneamente em uma receita financeira hoje e uma despesa com a dívida pública em uma semana. Como se pode observar no Gráfico 5, boa parte dos resgates da dívida pública (93,3% entre janeiro de 2007 e novembro de 2015) foi coberta com novas emissões. Em 2014, por exemplo, houve resgates de R$ 637 bilhões (65% da área vermelha do Gráfico 2) e emissões de R$ 567 bilhões (56% da área vermelha do Gráfico 3). Trata-se de um mecanismo que “infla” tanto as despesas quanto as receitas com a dívida pública e visa tão somente a aumentar a transparência das operações do Tesouro Nacional. Se a dívida fosse cancelada ou anulada, a queda no encargo da dívida seria integralmente compensada por uma perda de receita financeira. Portanto, é falsa a ideia de que despesas sociais e investimentos públicos poderiam dobrar se a dívida fosse cancelada ou anulada – o espaço no orçamento seria significativamente menor que aquilo que a Auditoria Cidadã dá a entender com o gráfico em formato de pizza.

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Fonte: Tesouro Nacional

Em larga medida, o elevado valor de emissões e resgates ocorre porque parcela significativa da dívida pública brasileira vence no curto-prazo – e isso é uma das razões pelas quais é indevido comparar o nível de endividamento público brasileiro com o de outros países para se concluir que a dívida pública brasileira não seria assim tão alta. Em novembro de 2015, 22% da dívida mobiliária federal (R$ 568 bilhões) venceriam em até 12 meses. Ou o setor público realiza um superávit primário dessa magnitude (quase 10% do PIB), ou terá que refinanciar parte deste montante no mercado financeiro ou deixa de pagar a dívida pública vincenda. Cabe mencionar que, apesar de precário, o perfil da dívida pública interna já foi pior: em dezembro de 1999, 55% da dívida mobiliária federal tinha vencimento em até 12 meses (Gráfico 6).

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Fonte: Tesouro Nacional[7]

Antes do vencimento dos títulos, o Tesouro Nacional realiza leilões com regras e prazos pré-definidos a fim de ter os recursos necessários para pagar juros e amortizar os títulos vincendos[8]. Caso realizasse os leilões na data de vencimento dos títulos, o Tesouro Nacional correria riscos de ter de refinanciar a dívida a taxas muito altas ou mesmo não conseguir refinanciar o montante desejado. Em algumas situações, o Tesouro Nacional realiza resgate antecipado de títulos com o objetivo de eliminar distorções de mercado ou aproveitar-se de condições favoráveis de financiamento. Apesar dessas informações serem públicas[9], a Auditoria Cidadã trata como uma descoberta da CPI da Dívida: A CPI da Dívida revelou que antes de cada vencimento de obrigações da dívida é feita nova oferta de títulos ao mercado, por meio dos “dealers” (grandes bancos que tem (sic) a prioridade na negociação dos títulos), ficando o Tesouro sujeito à chantagem do mercado financeiro, que só compra os títulos quando as taxas de juros se elevam até onde desejam os bancos. Assim, não se trata de mera troca, mas novas operações em novas condições, sujeitas às comissões e demais custos que tampouco são revelados de forma transparente pelo governo.[10]

Há outros casos de correspondência entre receitas e despesas de juros, embora em geral as receitas com juros sejam menores que as despesas a que estão relacionadas. Parte da dívida pública emitida pelo governo central (=despesas com juros, amortizações e resgates) tem como contrapartida haveres do governo central que também rendem juros (receitas financeiras), tais como:

– Reservas internacionais de aproximadamente USD 369 bilhões (novembro de 2015 e 18 de janeiro de 2016)[11], em sua grande maioria em títulos públicos de países emissores de moedas conversíveis[12];

– Dívidas de estados, municípios e empresas estatais com a União no valor de R$ 561 bilhões (novembro de 2015) decorrentes de renegociações (Lei 8.727/93, 9.496/97, Medida Provisória 2.185-35/2001) e reestruturações de dívidas. No passado, a União assumiu essas dívidas, resultando em expansão da dívida mobiliária federal e contratos de empréstimos da União com os entes subnacionais e estatais. Tais contratos em geral são remunerados por um índice de inflação mais taxas de juros e tiveram as taxas de juros diminuídas pela Lei Complementar 148/2014;

– Créditos do Tesouro Nacional junto Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que, em novembro de 2015 atingiram o montante de R$ 526 bilhões, os quais são remunerados pela Taxa de Juros de Longo-Prazo (TJLP), atualmente em 7,5% ao ano[13];

Portanto, em decorrência de elevado estoque da dívida mobiliária interna com vencimento no curto-prazo, de operações do Tesouro Nacional que visam a corrigir distorções e aproveitar-se de condições de mercado favoráveis e da expansão da dívida pública vinculada aos ativos da União, a comparação dos valores brutos dispendidos com juros, amortizações e resgates da dívida pública com outras despesas do governo central são de pouca utilidade prática para se entender o custo da dívida pública e o que isso representa em termos de sacrifício social. Não por outra razão, a metodologia internacionalmente aceita para finanças públicas leva em conta os juros e amortizações líquidos.

Em 2015, o Mercado Popular publicou texto no qual, partindo de uma metodologia distinta da adotada por este artigo, também refuta a ideia de que quase metade do orçamento é para pagar a dívida pública[14]. Ironicamente o texto do Mercado Popular incorre na mesma premissa falaciosa da Auditoria Cidadã: a comparação entre dívida e orçamentos do Estado com dívida e orçamentos pessoais, como se não houvesse muita diferença entre economia e economia doméstica. Isso fica evidente no início do texto do Mercado Popular, quando ressaltam que a dívida pública idealmente é emitida para financiamento de longo-prazo e para suavizar os impactos sociais das crises econômicas. Curiosamente, uma das razões pelas quais a Auditoria Cidadã considera a dívida pública ilegítima e ilegal é que não veem na dívida pública uma contrapartida em financiamento de longo-prazo ou políticas anticíclicas.

O aspecto que tanto a Auditoria Cidadã quanto o Mercado Popular desconsideram é que a dívida pública não é apenas resultado da política fiscal adotada, mas também das políticas monetária e cambial. Em outro texto publicado no início do mês[15], demostrei como o aumento do déficit público de 6% para 9,3% do PIB decorre de: a) aumento do déficit primário de 0,6% para 0,9% do PIB; b) aumento nas perdas com swaps cambiais de 0,2% para 1,8% do PIB; c) aumento da carga de juros de 5,3% para 6,7% do PIB sendo este último devido pelo do aumento da taxa Selic, inflação mais alta e deterioração das expectativas. Ao simplificar a questão a um denominador comum facilmente explicável – dívida adquirida sem contrapartida ou um Estado intrinsecamente perdulário – ambos deixam de tratar de aspectos essenciais da dívida pública brasileira. Desse modo, explicações como o gráfico em formato de pizza da Auditoria Cidadã são de pouca valia para a compreensão das variações da carga de juros ao longo do tempo. Levando-se em conta os números dos Gráficos 1 e 2, as despesas com juros, amortizações e refinanciamentos teriam caído de 45% para 42% do total de pagamentos realizados de 2014 para 2015, mas o que ocorreu foi exatamente o oposto.

No Gráfico 7, referente aos últimos 18 anos, pode-se observar que as despesas líquidas com juros da dívida pública sempre representaram entre 10% e 30% das despesas do governo central, patamar estruturalmente alto. Mesmo entre 2012 e 2013, quando a Selic esteve na mínima histórica, 15% das despesas eram com juros. Além de estruturalmente altas, as despesas com juros chegam próximas de 30% do total nos anos em que há depreciação cambial intensa (1999, 2002 e 2015) e sofrem flutuações de curto-prazo relacionadas aos ciclos da política monetária, embora a partir de 2012 a relação entre Selic e despesas com juros já não seja tão forte. Finalmente, no Gráfico 7 pode-se observar como as perdas com swaps cambiais explicam a maior parte do recente aumento na carga de juros.

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Fonte: Tesouro Nacional e BCB

Conclusão

Em novembro de 2015, a despesa com juros da dívida do setor público correspondia 26,7% das despesas do governo central, sendo 19,6% apropriação de juros propriamente ditos e 7% perdas com swaps cambiais. Sem sombra de dúvida um percentual elevadíssimo, mas longe dos 45% propalados pela Auditoria Cidadã. Ademais, embora sedutora, a ideia de que bastaria direcionar os recursos com a dívida para saúde, educação e outras áreas é falsa. Finalmente, tampouco concordo com quem vê na elevada dívida pública apenas o reflexo de um Estado perdulário. A dinâmica do déficit e da dívida pública resulta não apenas da política fiscal, mas também das políticas monetária e cambial.

[1] http://www.auditoriacidada.org.br/e-por-direitos-auditoria-da-divida-ja-confira-o-grafico-do-orcamento-de-2012/#_edn4.

[2] http://www.auditoriacidada.org.br/

[3] O Gráfico 1 utiliza o conceito de setor público consolidado, algo mais amplo que governo central (Tesouro Nacional, INSS e BCB) por incluir estados e municípios. Entretanto, como a União emitiu títulos próprios para assumir a dívida de estados e municípios, a dívida e despesas com juros do governo central é muito próxima da despesa com juros do setor público consolidado.

[4] Uma coisa é orçamento aprovado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), que pode ser alterado ao longo do ano. Outra é a execução orçamentária, que pode ser medida pelo critério de despesas empenhadas, liquidadas (a Administração admite que tem uma obrigação) ou pagas.

[5] Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? I. O valor da dívida não tem sentido

[6] http://www12.senado.leg.br/orcamento/loa

[7] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/relatorio-mensal-da-divida

[8] http://www.tesouro.gov.br/resultados-dos-leiloes

[9] http://www3.tesouro.gov.br/divida_publica/downloads/Parte%202_4.pdf

[10] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[11] http://www.bcb.gov.br/?RESERVAS

[12] http://www.bcb.gov.br/pec/sdds/port/templ1p.shtm . O resultado fiscal da política cambial não depende apenas do diferencial entre o custo da dívida pública e a remuneração das reservas (custo de carregamento das reservas). É importante que se leve em conta o resultado do BCB com swaps cambiais e a variação do valor das reservas em moeda nacional decorrentes das oscilações da taxa de câmbio. O Quadro 52 da Nota de Política Fiscal do BCB informa esses resultados mês a mês, com defasagem de um mês http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC. O resultado da política cambial, por sua vez, é parte do resultado do BCB – superávits do BCB resultam em aportes na Conta Única do Tesouro Nacional e déficits do BCB demandam aportes do Tesouro Nacional no BCB (LRF, art. 7º).

[13] O texto de estreia deste Blog trouxe algumas considerações sobre o volume e custo fiscal dos aportes realizados pelo Tesouro Nacional no BNDES: https://bianchiniblog.wordpress.com/2015/12/15/consideracoes-sobre-o-papel-do-bndes-um-debate-desonesto-2/

[14] http://mercadopopular.org/2015/10/faca-aqui-sua-auditoria-da-divida-publica/

[15]https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/01/03/sobre-o-aumento-nos-juros-da-divida-publica-em-2015/

Por que a Auditoria Cidadã não é levada a sério? I. O valor da dívida não tem sentido

No site da Auditoria Cidadã há um “dividômetro” informando que, no final de novembro de 2015, o valor da dívida interna era de R$ 3.794 bilhões e a dívida externa era de USD 546 bilhões[1]. Um primeiro problema é que os conceitos utilizados pela Auditoria Cidadã para dívida interna e externa são diferentes. Enquanto a dívida interna seria a dívida interna pública, a externa seria a dívida externa total, pública e privada. Adicionalmente, o conceito usado para dívida interna não corresponde ao do Manual de Finanças Públicas, nem seguem metodologia aceita internacionalmente.

  1. A dívida interna

Até a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o BCB emitia títulos próprios para operacionalizar a política monetária, tal como ocorre na maioria dos países. Como o BCB emitia títulos próprios, não era necessária a manutenção de títulos em carteira, pois a emissão ocorria conforme as necessidades da política monetária. O art. 34 da LRF alterou essa sistemática ao vedar a emissão de títulos de dívida pública pelo BCB. O objetivo de tal medida foi aumentar a transparência da relação Tesouro Nacional e BCB e impedir que, por meios indiretos, o BCB financiasse o Tesouro Nacional, algo vedado pelo art. 164 da Constituição Federal. Como o BCB já não pode emitir títulos próprios, é necessário que ele tenha uma carteira de títulos do Tesouro Nacional maior que a necessária para a operacionalização da política monetária. Caso contrário, a Autoridade Monetária teria que recorrer ao Tesouro Nacional sempre que precisasse realizar operações de mercado aberto, criando um complicador desnecessário para a execução da política monetária e submetendo a administração da política monetária ao Tesouro Nacional. Por essa razão, o BCB não utiliza todos os títulos do Tesouro Nacional de sua carteira para a execução da política monetária. No caso dos títulos não utilizados, os juros líquidos são nulos: os juros apropriados pelo BCB são transferidos para o Tesouro Nacional. Por essa razão, os títulos em carteira do BCB e não utilizados nas operações compromissadas (I) não integram a dívida interna, algo que recentemente foi reconhecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)[2].

A metodologia da Auditoria Cidadã desconsidera essa diferença porque entendem que o governo “OMITE o montante de títulos da dívida interna em poder do Banco Central (BC)[3]”. O que eles parecem ignorar é que os títulos na carteira do BCB utilizados nas operações compromissadas (H), por resultarem em despesas líquidas de juros para o Estado, são incluídos no conceito de dívida interna (DI). A exclusão se dá apenas para os títulos emitidos, mas não utilizados. Esse equívoco aumenta a dívida interna em
R$ 294 bilhões (24% dos títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB).

Outra questão é a exclusão das aplicações de entes da Administração federal e governos subnacionais em títulos públicos federais, o que infla a dívida interna em R$ 41,1 bilhões. Neste caso, os credores do Tesouro Nacional são entes estatais. Para os entes da Administração federal, trata-se de mera transferência de recursos entre órgãos do mesmo ente federativo. Desse modo, o impacto líquido sobre a dívida do governo é nulo. Adicionalmente, é omitida a dedução dos títulos sob custódia do Fundo de Garantia à Exportação (FGE) (C), fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda e que, assim como os títulos do Tesouro Nacional na carteira do BCB, não têm impacto líquido sobre a dívida do governo[4].

Curiosamente, essa associação que visa a combater as relações entre Estado e rentistas não inclui na dívida interna as dívidas bancárias dos entes estatais de quase R$ 133 bilhões. Além de ser tecnicamente equivocada, a omissão exclui da dívida pública justamente as obrigações com maiores limitações impostas pela LRF (arts. 32 a 38) e com probabilidade não desprezível de ocorrência de ilegalidades.

Deste modo, a Auditoria Cidadã infla a dívida pública interna em R$ 341 bilhões e simultaneamente desconsidera dívidas bancárias de R$ 133 bilhões, de modo que o que eles chamam de dívida interna é 5,8% maior que a dívida interna.

Quadro 1 – Dívida pública interna em bilhões de reais)

  Set/15 Nov/15
Dívida interna (DI=A+H+J+K+L)  3.522  3.586
          Dívida mobiliária em mercado (A=B+C+D+E+F)  2.539  2.529
             Dívida mobiliária do Tesouro Nacional (B)  2.579  2.564
             Títulos sob custódia do FGE (C) – 6 – 6
             Dívidas securitizadas e TDA (D)   9   11
             Aplicações de entidades da adm. Federal (E) -44 -41
             Aplicações dos governos subnacionais (F) -0,1 -0,1
          Títulos na carteira do Bacen (G=H+I)  1.214  1.219
             Operações compromissadas do Bacen (H)   854   925
             Títulos não utilizados (I)   360   294
          Dívida bancária do Governo Federal (J)   11   12
          Dívida bancária dos governos estaduais (K)   100   103
          Dívida bancária dos governos municipais (L)   17   18
Títulos emitidos pelo Tesouro Nacional (DE=B+D+G)  3.803  3.794

Fonte: BCB (Nota de Política Fiscal, Quadros 17 e 36)

I2. A dívida externa

O valor da dívida externa considerado pela Auditoria Cidadã inclui a dívida privada e empréstimos intercompanhias, os quais atualmente não são classificados como empréstimos externos. A justificativa dada pela Auditoria Cidadã é que a dívida externa considerada inclui a dívida externa privada, pois a mesma (sic) envolve uma obrigação do Estado, tendo em vista que é o BC o responsável por disponibilizar dólares para o pagamento desta dívida, se necessário, às custas (sic) de privatizações, juros altos, e aceitação das políticas do FMI, como sempre ocorreu e continua ocorrendo[5].”

Trata-se de uma tese no mínimo questionável. A Lei 4.595/64, art. 11, III atribui ao BCB a competência para intervir no mercado de câmbio visando a “estabilidade relativa das taxas de câmbio e do equilíbrio no balanço de pagamentos”. Como o regime cambial adotado é de câmbio flexível, não há compromisso da Autoridade Monetária em disponibilizar moedas estrangeiras. O que pode ocorrer é que, em situações de excepcional desequilíbrio – efetivo ou iminente – do balanço de pagamentos o Conselho Monetário nacional (CMN) outorgue ao BCB o monopólio das operações de câmbio (Lei 4.595/64, art. 4º, XVIII).

Parte da confusão entre dívida externa pública com dívida externa total decorre de uma leitura descontextualizada do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual determinava “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Quando a Constituição Federal foi promulgada, o Brasil se encontrava em plena crise da dívida externa e quase toda a dívida externa era pública: de acordo com o BCB, em 1988, a dívida externa registrada era de USD 103,5 bilhões, dos quais 88% pública e 12% privada. Atualmente, a maioria da dívida externa é privada e emitida a partir dos anos 80 e 90. Adicionalmente, houve renegociação da dívida externa brasileira no âmbito do Plano Brady e esses títulos já foram quitados na década passada. Portanto, o mandamento constitucional perdeu a eficácia.

A dívida externa pública (A+B+C) é de USD 69,7 bilhões, sendo quase 44% com agências governamentais e organismos internacionais. Isso inclui, por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (DES) no FMI[6] e crédito para obras de infraestrutura do Banco Mundial. Se incluir as dívidas de empresas (D) e bancos estatais (E), o que não corresponde aos critérios internacionais de cálculo da dívida pública externa, mas que poderia fazer sentido em uma auditoria do setor público, a dívida externa chegaria a USD 133,5 bilhões, valor que corresponde apenas a 12% da dívida externa informada pela Auditoria Cidadã. O restante (F+G+H) são passivos exclusivamente privados. Além da auditoria ser de questionável constitucionalidade, como o foco declarado da Auditoria Cidadã são os juros da dívida pública, não faz sentido auditar a dívida externa privada.

 Quadro 2 – Dívida externa por credores e devedores (Setembro de 2015)

USD bilhões Organismos internacionais e agências governamentais Bancos Outros Total
Tesouro Nacional (A) 1,4 1,1 31,5 33,9
Banco Central (B) 4,1 4,1
Estados e Municípios (C) 25,0 3,7 3,0 31,8
Empresas públicas (D) 9,4 0,0 3,5 13,0
Bancos estatais (E) 6,0 30,2 14,5 50,8
Bancos privados (F) 2,4 71,7 30,7 104,8
Setor privado não bancário (G) 8,1 68,6 30,0 106,6
Operações intercompanhia (H) 203,8 203,8
Total 56,3 175,3 317,1 548,7

Fonte: BCB (Nota de Política Externa, Quadro 23)

Conclusão

Para uma associação que se propõe a auditar a dívida pública, a Auditoria Cidadã utiliza conceito equivocado de dívida interna que deixa de incluir a dívida interna bancária e inclui artificialmente a dívida interna com títulos emitidos pelo Tesouro Nacional e detidos por outros entes públicos e curiosamente. No que se refere à dívida externa, há uma leitura descontextualizada do art. 26 dos ADCTs e entendimento equivocado do papel do BCB no mercado de câmbio, levando-os a incluir a dívida externa privada e empréstimos intercompanhia no que deveria ser auditado.

É essencial que auditores tenham conhecimento profundo das contas analisadas. Como levar a sério quem se propõe a auditar a dívida pública, mas apresenta números tão imprecisos? Em breve postarei um texto sobre como o famoso gráfico pizza que mostra 40% a 50% do orçamento público comprometido com a dívida pública passa uma ideia completamente equivocada e repetida pelos dois candidatos presidenciais mais descolados[7].

[1] http://www.auditoriacidada.org.br/

[2] http://oglobo.globo.com/economia/fmi-vai-considerar-calculo-do-banco-central-para-divulgar-divida-bruta-do-brasil-12801806 e http://www2.valor.com.br/valor-investe/casa-das-caldeiras/3217106/relacao-institucional-entre-bc-e-divida-publica-%E2%80%93-alvo-do-f

[3] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[4] http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/finpub/manualfinpublp.pdf

[5] http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/04/Numerosdivida.pdf

[6] Não se deve confundir DES com os empréstimos tomados junto ao FMI na década passada e que foram quitados.

[7] http://www.auditoriacidada.org.br/auditoria-da-divida-e-destaque-em-debate-de-presidenciaveis/

Expectativa para 2016: ruim, medíocre na melhor das hipóteses!

A crise econômica que o Brasil vem sofrendo é grave. Embora a economia brasileira esteja perdendo dinamismo desde 2011, foi a partir do segundo trimestre de 2014 que o PIB passou a exibir sucessivos resultados negativos. Nos 4 trimestres encerrados em setembro de 2015, o PIB caiu 2,5% em relação aos 4 trimestres anteriores. Na mesma base de comparação, a formação bruta de capital fixo, principal componente dos investimentos, teve queda de 11,2%. Independentemente do tamanho da queda do PIB no último trimestre de 2015, já se pode dizer que essa é a crise econômica mais intensa da história do Plano Real, conforme se observa no gráfico abaixo.image001

Fonte: IBGE

Um dos reflexos da crise foi aumento na taxa de desemprego. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulga duas pesquisas de emprego: a PNAD contínua e a PME (Pesquisa Mensal de Emprego). Na medição pela PNAD contínua, a taxa de desemprego foi de 8,9% em setembro de 2015, contra 6,8% em setembro de 2014 (+2,1%). Já pela PME, o desemprego aumentou de 4,9% em novembro de 2014 para 7,5% em novembro de 2015 (+2,6%). Como há sinais inequívocos de que a economia continua em recessão e o desemprego aumenta todo início de ano por um efeito sazonal, haverá aumento de desemprego ao longo do primeiro trimestre de 2016.

É praticamente consensual que a recessão continuará ao longo de 2016. De acordo com o Boletim Focus, publicado semanalmente pelo Banco Central do Brasil (BCB)[1] desde 2001, a mediana das instituições consultadas acredita que em 2015 o PIB tenha caído 3,71%[2] e irá cair 2,99% em 2016. Caso esse cenário se concretize, o triênio 2014-16 terá sido o de pior desempenho para o PIB desde 1901. A queda acumulada de 6,5% no PIB terá sido maior que as recessões ocorridas após o Plano Collor (-3,8% entre 1990 e 1992), a da Crise da Dívida Externa (-6,3% entre 1981 e 1983) e a Crise de 1929 (-4,3% entre 1929 e 1931). Se o parâmetro utilizado for a renda per capita, no final de 2016 a renda per capita será menor que a do final de 2010. A queda na renda per capita entre 2014 e 2016 terá sido similar à da crise do início dos anos 90 e um pouco menor que a da crise do início dos anos 80[3]. Não é coincidência que as recessões mais graves tenham resultado em rupturas políticas. Portanto, não surpreende que tenhamos a possibilidade mais concreta de impeachmet da história do Plano Real.

As previsões de analistas de mercado como as do Boletim Focus devem levadas em conta com ressalvas. Entre 2001 e 2014, o crescimento efetivo do PIB foi em média 0,1% menor que primeira previsão do ano. Um olhar mais atento, entretanto, demonstra que a média não é um bom indicador de acurácia das previsões econômicas. Entre 2011 e 2014, houve erro superior a 2% em 5 anos e, em 2015, muito provavelmente o erro será superior a 3% (Vide Quadro abaixo). O mercado superestimou o crescimento em 2001 (racionamento de energia elétrica), 2009 (crise financeira internacional) e em 2015 (crise em curso). Ainda no início de 2015, quando a recessão se tornou evidente, mesmo em cenários que contemplavam racionamento simultâneo de água e energia – o que não veio a ocorrer – os agentes previam recessão muito mais amena que a atual[4]. Por outro lado, o mercado subestimou o crescimento do PIB em anos de recuperação econômica cíclica (2004 e 2010) ou aceleração do crescimento (2007).

 

Mediana das previsões: Boletim FOCUS Variação do PIB Erro de previsão em relação ao início do ano
Início do ano Início do ano seguinte
2001            4,00        1,80        1,39        2,61
2002            2,40        1,45        3,05 –      0,65
2003            1,93        0,10        1,14        0,79
2004            3,55        5,10        5,76 –      2,21
2005            3,60        2,40        3,20        0,40
2006            3,50        2,73        3,96 –      0,46
2007            3,50        5,20        6,07 –      2,57
2008            4,50        5,62        5,09 –      0,59
2009            2,40 –      0,26 –      0,13        2,53
2010            5,20        7,61        7,53 –      2,33
2011            4,50        2,87        3,91        0,59
2012            3,30        0,98        1,92        1,38
2013            3,26        2,28        3,01        0,25
2014            1,95        0,15        0,10        1,85
2015            0,50 –      3,71 ND  
2016 –          2,99 NA NA

Fonte: BCB e IBGE

Isso não significa que eu acredite em teorias conspiratórias ou na ideia de que a crise é uma criação da mídia golpista, mas de constatar que erros de grande magnitude sobre a variação do PIB são comuns na série histórica brasileira e ocorrem em anos de mudança. Em outras palavras, há indícios que as expectativas de futuro são influenciadas pelos resultados do presente. Em grande medida, isso é aderente com as conclusões do estudo de Jonas Dovern and Nils Jannsen sobre expectativas e crescimento econômico em economias avançadas. Os autores constataram que os agentes cometem erros sistemáticos ao longo do ciclo econômico, não antecipando os pontos de inflexão[5]. Em muitos casos, são choques não antecipados – como aumento na demanda externa ou redução acima do esperado dos estoques indesejados – que precedem a recuperação[6]. Dito de outro modo, a melhora das expectativas costuma ser precedida por uma melhora não antecipada da economia. No final de 2015, alguns indicadores tiveram comportamento melhor que o esperado. Embora esse tipo de erro costume ocorrer no início das recuperações econômicas, ainda é cedo para se afirmar se são apenas pontos fora da curva ou pontos de inflexão:

– O desemprego medido pela PME caiu de 7,9% para 7,5% entre outubro de novembro. Na série da PME (a partir de mar/02), quedas dessa magnitude são comuns no final do ano. Entretanto, como a crise atual é a pior desde que a PME é publicada, esperava-se manutenção da taxa de desemprego[7];

– No último trimestre, houve leve queda do nível de estoques e da capacidade ociosa na indústria, resultando em discreto aumento da confiança industrial[8];

– Em novembro, houve crescimento de 1,5% das vendas no varejo em relação a outubro. O resultado foi muito melhor que previsão de queda de 0,9% dos analistas consultados pelo Valor Econômico, sendo superior inclusive à previsão mais otimista, de crescimento de 0,2%[9];

– Em dezembro, o superávit comercial foi consideravelmente maior que o esperado[10], resultado puxado pelas exportações industriais[11];

Dos poucos dados positivos, sem dúvidas que o mais importante é o aumento do saldo comercial. Incluo-me entre os economistas que identificam na sobrevalorização cambial iniciada na década passada o desajuste central da economia brasileira, que foi agravado, nos últimos anos, por decisões equivocadas de política econômica. É principalmente em decorrência do ajuste no câmbio e a melhora no saldo comercial que Bresser-Pereira escreveu em sua página de Facebook que “logo a economia brasileira estará saindo da recessão”. Para José Luis Oreiro, outro economista que também vinha enfatizando o papal nefasto da sobrevalorização cambial, a taxa de câmbio encontra-se em patamar que restaura a competitividade industrial e, caso o real não volte a se apreciar, a indústria voltará a ganhar participação no PIB em um processo lento, “cujos primeiros sinais deverão ser observados apenas no início de 2017. Ainda teremos que conviver por um longo tempo com um quadro recessivo”. No entanto, José Luis Oreiro manifesta cautela, pois é possível que sejam necessárias novas rodadas de depreciação cambial[12]. Adicionalmente, como as empresas privadas recentemente aumentaram o endividamento externo[13], no curto prazo a depreciação cambial tem efeitos recessivos por piorar a posição patrimonial das empresas[14].

Apesar do imprescindível ajuste cambial e de alguns resultados acima da expectativa no último trimestre de 2015, o cenário para 2016 é negativo e com várias incertezas. O ajuste fiscal ainda está incompleto: entre dezembro de 2014 e novembro de 2015, o déficit primário do setor público foi de 0,9%, marca que não era atingida desde novembro de 1998. Dada a rigidez de despesas imposta pela Constituição Federal, uma trajetória fiscal sustentável depende, pelo menos no curto-prazo, de aumento de arrecadação. Por outro lado, as mudanças demográficas colocam as contas da previdência em trajetória claramente insustentável. Logo, enquanto não houver concessões tanto por parte daqueles que defendem uma redução do tamanho do Estado, quanto dos que lutam por uma maior abrangência da seguridade social, a crise fiscal persistirá e no médio prazo pode inclusive ameaçar a solvência do Estado brasileiro. Agrava esse impasse o fato que, enquanto a questão do impeachment não for encerrada, o Congresso Nacional tende a dar pouco espaço para a discussão do ajuste fiscal. Adicionalmente, a Petrobrás, principal investidora do país, terá que reduzir fortemente investimentos para se adequar à queda dos preços internacionais do petróleo. A persistência da inflação elevada também impede que o Banco Central estimule a economia por meio da queda da taxa de juros. Finalmente, ainda é incerto se a China conseguirá promover uma desaceleração suave de sua economia ou se as recentes turbulências resultarão em crise econômica[15].

A partir dessas considerações, sou um pouco mais otimista que a média dos economistas por entender que: i. expectativas de mercado estão sujeitas a erros em momentos de inflexão: assim como os agentes de mercado não anteciparam a gravidade da crise de 2015, é improvável que antecipem a recuperação; ii. o principal ajuste, da taxa de câmbio, já foi realizado (pelo menos parcialmente), o que se refletiu no expressivo saldo comercial de dezembro; iii. alguns indicadores do último trimestre surpreenderam positivamente, embora não existam dúvidas sobre a continuidade da recessão. Por outro lado, além de riscos externos, como preços do petróleo e desaceleração da economia chinesa, os obstáculos políticos ao ajuste fiscal tendem a impedir uma recuperação vigorosa da economia. Em suma, acredito que o PIB cairá menos que 3% em 2016, mas dificilmente sairemos da recessão. Provavelmente 2016 será outro ano ruim, medíocre na melhor das hipóteses!

[1] http://www.bcb.gov.br/?FOCUSRELMERC

[2] Estimativa de 31/12/2015. O IBGE publicará a primeira prévia do PIB de 2015 no final de fevereiro de 2016.

[3] No início dos anos 80, a população crescia entre 2,2 a 2,3% ao ano. No início dos anos 90, entre 1,7% e 1,6% ao ano. Atualmente, a taxa encontra-se entre 0,8 e 0,9% ao ano. Por essa razão, mesmo que a queda no PIB entre 2014 e 2016 seja maior que a do início dos anos 80, a queda da renda per capita será menor.

[4]http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,com-racionamento-pib-pode-cair-ate-2,1627896

[5]https://www.ifw-members.ifw-kiel.de/publications/systematic-errors-in-growth-expectations-over-the-business-cycle/systematic-errors-in-growth-expectations-over-the-business-cycle

[6] http://www.valor.com.br/opiniao/4153790/expectativas-e-retomada-do-crescimento

[7]http://www.valor.com.br/brasil/4361758/taxa-de-desemprego-cai-mas-e-maior-para-novembro-desde-2008

[8]http://www.valor.com.br/brasil/4372088/melhora-da-confianca-da-industria-deve-ser-vista-com-cautela-diz-fgv

[9]http://www.valor.com.br/brasil/4389504/varejo-recua-78-em-novembro-ante-2014-maior-baixa-em-12-anos

[10]http://www.valor.com.br/brasil/4377716/balanca-supera-previsao-e-deve-evitar-queda-maior-do-pib

[11] http://www.valor.com.br/brasil/4377690/industrializado-volta-liderar-exportacoes

[12] https://jlcoreiro.wordpress.com/

[13] De acordo com o BCB, a dívida externa bruta privada foi de USD 177,7 bilhões em setembro de 2010 para USD 275,2 bilhões em setembro de 2015, crescimento de 54,5%.

[14] http://www.abece.org.br/Noticias/ComercioExteriorRead.aspx?cod=6403

[15]http://www.valor.com.br/impresso/wall-street-journal-americas/pessimismo-profundo-toma-conta-da-economia-chinesa-e-desafia-p

Sobre o aumento nos juros da dívida pública em 2015

Um dos reflexos da crise econômica é a queda nas receitas públicas o que, combinado com a rigidez na estrutura de despesas estatais, tem contribuído para expressiva deterioração das finanças públicas. Em 2014, o setor público brasileiro teve déficit primário de 0,6% do PIB, algo que não ocorria desde 1997, quando o déficit primário foi de 0,9% do PIB (Vide Gráfico 1)[1]. Enquanto a grande maioria dos economistas tem se dedicado a analisar a evolução do saldo primário[2], relativamente pouca atenção tem sido dada ao aumento expressivo dos juros da dívida pública, que nos doze meses acumulados em novembro de 2015 consumiram 8,6% do PIB, contra 5,5% em 2014 e 4,7% em 2013.

Preliminarmente, cabe apontar que os dados de despesas com juros da dívida pública divulgados mensalmente pelo BCB não são comparáveis com os dados dos anos 90, pois 2009 o BCB calculava os juros incidentes sobre a dívida pública levando em conta o impacto da variação da taxa de câmbio sobre a dívida interna indexada ao câmbio (série com valorização cambial). Como a dívida interna corrigida pela variação cambial praticamente foi eliminada no final da década passada, o BCB passou a desconsiderar o impacto da taxa de câmbio no serviço da dívida interna, passando a divulgar a série “sem desvalorização cambial”. Apesar de não divulgada desde 2009, é possível calcular a carga de juros com desvalorização cambial a partir dos dados da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) publicados mensalmente. Utilizando-se a metodologia antiga, que permite a comparação com o final dos anos 90 e início dos anos 2000, a carga de juros da dívida pública atingiu 8,1% do PIB nos 12 meses encerrados em novembro de 2015, contra 12,5% em 1999 e 12,8% em 2002 (Gráfico 1).

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Fonte: BCB (elaboração própria)

É muito comum que a imprensa não especializada, políticos e críticos da política monetária atribuam a alta na carga de juros da dívida pública ao aumento da taxa Selic, cuja meta está atualmente em 14,25% ao ano. Dentro desta visão, uma queda da taxa Selic permitiria um a redução na carga de juros da dívida pública, contribuindo para o ajuste fiscal. A grande falha deste raciocínio é que ele não leva em conta a mudança na composição da dívida mobiliária federal (DMF) ao longo dos últimos anos: enquanto no final dos anos 90 e início da década passada os títulos indexados à taxa Selic representavam mais da metade da DMF, atualmente não chegam a um terço do total se levarmos em conta o saldo de operações no mercado aberto (Gráfico 2). Por essa razão, o impacto da taxa Selic no custo da dívida pública é significativamente menor que no passado recente.

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Fonte: BCB

Evidentemente que, com isso, não se quer dizer que a taxa Selic não exerça influência alguma sobre o custo da dívida pública. Por ser a referência para a política monetária, ela influencia na formação da taxa dos títulos pré-fixados e indexados a índices de preços, mas já não é o único determinante do custo da dívida pública brasileira. Adicionalmente, como veremos em seguida, os sucessivos aumentos da taxa Selic ocorridos entre outubro de 2014 e julho de 2015 não explicam sozinhos a magnitude no aumento da carga de juros. De fato, um leitor familiarizado com indicadores da economia brasileira deve ter percebido que os anos de 1999, 2002 e 2015 têm um elemento em comum: foram marcados por expressiva desvalorização cambial (Gráfico 3).

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Fonte: BCB

Como se pode observar no Gráfico 2, tanto em 1999, quanto em 2002, parcela expressiva da DMF era corrigida pela taxa de câmbio e, por essa razão, as respectivas maxidesvalorizações cambiais aumentaram diretamente a carga de juros da dívida pública. Em 2014 e 2015 a área azul do gráfico é bem menor e, portanto, o impacto do câmbio sobre o déficit público não decorre de dívida interna indexada ao dólar. A diferença fundamental pode ser encontrada nos contratos de swap cambial realizadas entre o Banco Central e agentes privados. Por meio de tais contratos, o BCB remunera os particulares em função da variação da taxa de câmbio e é remunerado em função da de juros acumulada. Se o câmbio se apreciar ou se a taxa Selic aumentar significativamente, o BCB tem saldo positivo. Caso contrário, o saldo é negativo para o BCB e positivo para os agentes privados. Trata-se de uma forma da Autoridade Monetária intervir no mercado cambial sem utilizar reservas[3] e de ofertar contratos que possibilitam aos agentes privados a obtenção de proteção (hedge) contra a depreciação do real.

Do ponto de vista do balanço patrimonial do Estado brasileiro, ganhos (perdas) patrimoniais com os swaps cambiais são compensados por perdas (ganhos) com as reservas. Por outro lado, as despesas com swaps são contabilizadas na conta de juros, ao passo que o ganho patrimonial com a valorização das reservas não é contabilizado como receita de juros, embora contribua para a queda da dívida líquida do setor público na conta “ajuste metodológico sobre dívida externa”. Como se pode observar no Gráfico 4, o BCB aumentou a oferta de contratos de swap cambial entre meados de 2013 e o início de 2015 e, desde então, tem mantido o estoque de contratos em pouco mais de 100 bilhões de dólares.

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Fonte: BCB

Como a partir do segundo semestre de 2014 o real tem perdido valor, o BCB tem incorrido em fortes perdas com swaps cambiais. De fato, a despesa líquida com swaps cambiais passou de 0,2% do PIB em 2014 para 1,8% do PIB nos 12 meses encerrados em novembro de 2015. Se os swaps cambiais fossem desconsiderados, a despesa com juros teria passado de 5,3% do PIB em 2014 para 6,7% nos 12 meses encerrados em novembro de 2015[4] (Gráfico 5). Em outras palavras, mais da metade do aumento na carga de juros de dezembro de 2014 para novembro de 2015 se deve ao aumento das perdas com swaps cambiais.

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Fonte: BCB (elaboração própria)

Outra forma de se analisar o custo da dívida pública é pela taxa de juros implícita incidente sobre a Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) nos últimos 12 meses. Ela passou de 19,3% em dezembro de 2014 para 27,9% em novembro de 2015. Ao se desconsiderar a despesa líquida com swaps cambiais a partir de dezembro de 2014[5] (linha verde), a taxa implícita da DLSP teria aumentado de 18,7% para 22,6%, o que ainda assim configuraria o valor máximo da série histórica iniciada no final de 2002 (Vide Gráfico 6). O Gráfico 6 também mostra como a queda da Selic por si não é suficiente para tornar a dívida pública mais barata: durante o ciclo que reduziu a taxa Selic para a mínima histórica, em 2012, o custo da dívida pública manteve-se praticamente constante.

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Fonte: BCB e IBGE (elaboração própria)

No Gráfico 7, por sua vez, estão representadas a taxa implícita e a Selic reais. Nos onze primeiros meses de 2015, o aumento de 2,2% na taxa Selic foi inferior ao aumento do IPCA, que foi de 6,4% para 10,5%. Interessante observar que o aumento de 4,1% no IPCA foi da mesma magnitude do aumento na taxa implícita da DLSP. De fato, a taxa implícita real da DLSP de novembro de 2015 era praticamente a mesma de dezembro de 2014, ao passo que a taxa Selic real tem caído, um indício de que a inflação é mais importante que a Selic para explicar a recente alta na carga de juros da dívida pública[6].

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Fonte: BCB e IBGE (elaboração própria)

Conclusão

Embora preocupante, o aumento na carga de juros da dívida pública de 2015 encontra paralelo com valores de 1999 e 2002 (Gráfico 1), os quais, assim como 2015, foram anos de maxidesvalorizações cambiais (Gráfico 3). Enquanto em 1999 e 2002 a desvalorização cambial aumentou o custo da dívida interna indexada ao dólar, em 2015 a depreciação cambial aumentou as despesas com juros por causa das operações com swaps cambiais (Gráfico 4), os quais responderam por mais da metade da elevação na carga de juros ocorrida no último ano (Gráfico 5).

Ao contrário de um discurso bastante comum, a alta na Selic não é a principal causa do aumento na despesa com juros da dívida pública, o que ocorre tanto pela perda de espaço da Selic como indexador da dívida pública (Gráfico 2), quanto em decorrência das despesas com swaps cambiais (Gráfico 5). Adicionalmente, mesmo se desconsiderarmos a despesa com swaps, o aumento da taxa implícita de juros da dívida líquida do setor público foi menor que a Selic e praticamente igual ao aumento na taxa de inflação (Gráficos 6 e 7). Desse modo, uma eventual queda na taxa Selic teria impactos incertos sobre o custo do endividamento público: como indexador de quase um terço da dívida pública e taxa básica de juros, contribuiria para reduzir o custo da dívida pública. Por outro lado, uma eventual queda na Selic aumentaria expectativas para inflação e a taxa de câmbio, contribuindo para encarecer a dívida pública.

[1] Os indicadores de déficit público analisados neste artigo são elaborados pelo Banco Central do Brasil (BCB) e seguem o critério “abaixo da linha”, com estimativa do déficit a partir de variações no endividamento público. A ideia subjacente é que, excluídas as variações exclusivamente patrimoniais, aumento no endividamento reflete um déficit público ou Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP). NFSP = Receitas – Despesas. As despesas, por sua vez, são decompostas em Despesas Primária e Despesas com juros da dívida pública. NFSP Primária = Receitas – Despesas primárias. NFSP = Receita – Despesas primárias – Despesas com juros da dívida pública.

[2] Para uma análise rigorosa da evolução do saldo primário nos últimos anos, vide http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2132.pdf

[3] Para uma análise do impacto das operações de swap cambial sobre o mercado de câmbio, vide: SKohlscheen, Emanuel & Andrade, Sandro C. Official interventions  trough derivatives: affecting the demand for foreign  exchange. Working papers 317, Banco Central do Brasil, 2013.

[4] Se os juros fossem calculados pelo método com desvalorização cambial, nos 12 meses encerrados em novembro de 2015, a carga de juros teria sido de 8,1% do PIB ou 6,4% do PIB se as perdas com swaps cambiais forem desconsideradas.

[5] Fonte: http://www.bcb.gov.br/ftp/infecon/Estatisticasfiscais.pdf

[6] A taxa Selic real esperada também tem caído ao longo do 2º semestre de 2015. No final de julho de 2, a meta para a taxa Selic era de 14,25% e, de acordo com o Boletim Focus, a mediana do IPCA projetado para os 12 meses seguintes era de 5,67%, resultando em uma taxa real de juros de 8,1%. Na última semana do ano, a meta para a taxa de juros era a mesma, mas o IPCA projetado para os 12 meses era de 6,98%, resultando em taxa real de 6,7%.