Causas da grande depressão brasileira

A profundidade da crise

Entre 2015 e 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro teve queda acumulada de 6,7% e, desde então, o crescimento do PIB tem sido da ordem de 1% ao ano, pouco acima do crescimento populacional. Entre 2014 e 2018, a queda acumulada no PIB per capita foi de 8% e não há sinais que recuperemos tão cedo o nível de 2013. A crise atual, embora não seja a mais profunda de nossa história, é a mais duradoura desde 1901, não havendo, no início de 2019, sinais de retomada do crescimento econômico.
De fato, desde 1929, tivemos outras crises em que o PIB per capita caiu por mais de um ano: 1929-31 (-7,9%), 1940-42 (-4,5%), 1963-65 (-2,4%), 1981-83 (-12,4%), 1990-92
(-7,7%), 1998-99 (-2,2%). Com exceção da crise de 1998-99, essas crises coincidem com algum grau de ruptura institucional e, com exceção da crise atual, o PIB per capita cresceu rapidamente nos anos seguintes à crise (Gráfico 1).
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Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Hipóteses explicativas mais comuns

Há grande dissenso entre economistas na identificação das causas da crise atual e, consequentemente, no receituário a retomada do crescimento econômico. As quatro explicações mais comuns para a crise residem na política macroeconômica adotada até 2014, na queda dos preços das commodities ocorrida em 2014, na política macroeconômica adotada desde 2015 e em endividamento privado (até 2015) seguido de desendividamento privado (a partir de 2016).

1. A política adotada a partir da crise econômica de 2008 e, com mais intensidade na segunda metade do primeiro governo de Dilma Rousseff, conhecida como “Nova Matriz Econômica” (NME), com padrão errático de intervenção no domínio econômico combinado e política macroeconômica inconsistente

Desde que criei este Blog, sou crítico da política econômica do primeiro governo Dilma, especialmente de 2013 e 2014. No início do governo Dilma, a economia se encontrava sobreaquecida – em 2010, o PIB cresceu 7,5% – resultando em aumento da inflação – entre agosto de 2010 e setembro de 2011, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em 12 meses aumentou de 4,5% (centro da meta de inflação) para 7,3% (acima do teto da meta de inflação) – e do déficit em transações correntes – que na metodologia atual aumentou de 1,5% do PIB em 2009 para 3,6% do PIB em 2010 (Gráfico 3).
Inicialmente, a política macroeconômica se voltou a reduzir a inflação e o desequilíbrio externo. De 2010 para 2011, o superávit primário aumentou de 2,6% para 2,9% do PIB. O Banco Central do Brasil (BCB), elevou a meta da taxa Selic de 8,75% para 12% entre abr/10 a set/11, reduzindo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em 12 meses para 4,9%, pouco acima do centro da meta de inflação, em jun/12. A política cambial visou a limitar o influxo de capitais e a apreciação do real: entre abril de 2011 e junho de 2013 foi instituída alíquota de 60% sobre as posições vendidas de câmbio dos bancos e, entre 2011 e abril de 2013 o volume de reservas aumentou USD 90 bilhões, para USD 379 bilhões. Um efeito disso foi desaceleração do crescimento do PIB, para 4% em 2011 e 1,9% em 2012, cabendo ressaltar que os valores inicialmente divulgados pelo IBGE fossem de 2,7% 0,9%, respectivamente.
Devido à redução da inflação, o BCB reduziu a Selic, que chegou a 7,25% em setembro de 2012, até então a mínima histórica. Devido à desaceleração econômica, o superávit primário diminui para 2,2% do PIB em 2012. No segundo semestre de 2012, a inflação voltou a subir, ameaçando ultrapassar o teto da meta, então em 6,5%. Para evitar que o BCB aumentasse a Selic, o governo conteve preços de combustíveis e energia elétrica para impedir que a inflação ultrapassasse o teto da meta. Além de criar sinalizações equivocadas, incentivando o consumo de energia em momento no qual o país passava por secas que reduziram a capacidade de geração de energia elétrica, os controles de preços impulsionaram endividamento da Petrobrás e impuseram perdas bilionárias para Eletrobrás e diversas distribuidoras de energia elétrica.
Apesar do baixo crescimento do PIB, entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro semestre de 2013, o IPCA cresceu continuamente, estourando o teto da meta de inflação. A partir de abril de 2013, o BCB iniciou processo de alta da Selic para reduzir a inflação. Para limitar a alta da Selic e, com isso, evitar uma desaceleração ainda mais forte da economia, a alíquota de recolhimentos compulsórios sobre posição vendida de câmbio foi zerada, o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) referente a algumas operações de entradas de capitais foi reduzido e, a partir de junho de 2013, o BCB passou a emitir swaps cambiais que em poucos meses atingiram volume superior a USD 100 bilhões (Gráfico 2). O superávit primário reduziu-se para 1,7% do PIB, ou 1,4% do PIB se considerarmos o efeito das pedaladas. Em 2013, o PIB cresceu 3%, mas a inflação estava contida artificialmente por controles artificiais de preços e da taxa de câmbio.
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Fonte: BCB

Neste sentido, parece-me indiscutível que a política econômica adotada no primeiro governo Dilma foi inconsistente, adiando a necessidade de ajustes inevitáveis nos preços relativos. Entretanto, a magnitude dos erros adotados não explica a profundidade da crise: o saldo das pedaladas, por exemplo, nunca chegou a 1% do PIB e até 2013 o setor público incorria em superávits primários; embora tenha havido contenção artificial da inflação, o ajuste de preços de 2015 evidenciou que a inflação contida não chegou perto do que ocorreu na Argentina ou Venezuela, sendo possível combater inflação com mecanismos tradicionais de política monetária, tanto que a partir de 2016 o IPCA voltou a um dígito; apesar da sobrevalorização do real – cuja cotação foi mantida a partir de junho de 2013 por meio da colocação de swaps cambiais no mercado – e aumento dos déficits em transações correntes no primeiro governo, o BCB manteve elevado volume de reservas e a dívida externa é relativamente baixa. Por essa razão, mantenho minha concordância com Bráulio Borges: os erros de política econômica do primeiro governo Dilma explicam menos de 1/3 da crise.

2. A queda nas cotações de commodities exportadas pelo Brasil em 2014

Essa queda realmente ocorreu, resultou no aumento do déficit em transações correntes de USD 79,8 bilhões em 2013 para USD 101,4 bilhões em 2014 (Gráfico 3), exercendo efeito negativo sobre o PIB.
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Fonte: BCB

Embora a deterioração de termos de troca tenha contribuído para a recessão, seu poder explicativo é diminuto. A primeira questão é quanto à duração: a partir de meados de 2016, os preços das commodities iniciaram recuperação, resultando em diminuição do déficit em transações correntes a partir de 2015 que desde 2017 é de menos de USD 20 bilhões (menos de 1% do PIB), retomando o nível anterior à crise de 2008 (Gráfico 3). A segunda questão é o tamanho reduzido da corrente de comércio brasileira: desde meados da década passada, nem exportações, nem importações chegam a 15% do PIB, resultando em corrente de comércio de menos de 30% do PIB. É possível observar aumento das importações líquidas da crise de 2008 até 2014 e posterior reversão, mas o saldo é reduzido (Gráfico 4).
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Fonte: IBGE
Portanto, a deterioração de termos de troca, apesar de contribuir para a crise, foi localizada entre 2014 e 2016 e deve ser vista em perspectiva, pois o setor externo é muito pequeno para explicar em sua totalidade a dinâmica da econômica brasileira.

3. O ajuste monetário do final de 2014 ao final de 2016 e ajuste fiscal de 2015

Entre outubro de 2014 e julho de 2015, o BCB aumentou a meta da taxa Selic de 11% para 14,25%, mantendo-a nesse patamar até o final de 2016, quando, com inflação inequivocamente controlada, iniciou um ciclo de queda da taxa básica que terminou com a Selic em 6,5% no início de 2018, menor patamar nominal da história, acompanhado para expressiva redução nos requerimentos compulsórios dos depósitos bancários. Em 2014, o governo respondeu ao início da crise econômica acomodando a queda de receitas por meio da mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em dezembro daquele ano. Em 2015, houve expressivo corte de despesas discricionárias e, devido à quitação do saldo de pedaladas de anos anteriores (0,8% do PIB), o saldo primário (déficit de 1,9% do PIB – Gráfico 5) não explica totalmente o quão contracionista foi a política fiscal daquele ano. Em 2016, em parte devido a aumentos do funcionalismo, em parte para criar gordura para queimar antes da vigência do teto de despesas primárias, a política fiscal foi levemente expansionista, sendo praticamente neutra desde 2017.
Há três ordens de problemas em quem identifica na política macroeconômica adotada a partir do segundo governo Dilma a causa primordial da crise econômica: i. os efeitos da política macroeconômica são defasados, o que ocorreu, nos ciclos de alta da Selic de 2010/11 e 2014/16 e posterior queda da inflação. Neste sentido, a política macroeconômica de um ano produz efeitos no ano seguinte. Somente pressupondo agentes econômicos extremamente racionais, alto grau de credibilidade da política econômica e mercados ultra eficientes para que os ajustes sejam imediatos; ii. a ordem de grandeza nos ajustes – alta de 3,25% na Selic e restrição fiscal precária e apenas nas despesas discricionárias em 2015 – é muito pequena para explicar a magnitude da crise. O multiplicador fiscal teria de ser imenso, contrariando estudos empíricos; iii. desde 2017 a política monetária é expansionista e a política fiscal é neutra, não explicando a duração da crise.
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Fonte: BCB

4. Aumento do endividamento privado até 2015 e posterior redução

Outra explicação que se tornou bastante popular para explicar a crise econômica foi o aumento do endividamento privado nos anos que antecederam a crise e posterior redução. De fato, até 2015 o endividamento privado aumentou, mas exclusivamente no segmento de crédito direcionado (principalmente BNDES para pessoas jurídicas e financiamento imobiliário para pessoas físicas), com taxas de juros significativamente mais baixas, e captações no mercado interno substituindo o endividamento externo. Há quatro ordens de problemas nessa explicação: i. a desalavancagem privada teve início em 2016, quando a crise já estava instalada e diz respeito apenas às pessoas jurídicas (Gráficos 6 e 7); ii. desde 2008, o aumento do endividamento privado se deu nas modalidades mais baratas (Gráfico 7), mantendo o comprometimento de renda controlado; iii. o nível de endividamento privado brasileiro não destoa de outros países emergentes (Gráfico 8).
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Fonte: BCB e B3
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Fonte: BCB
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Fonte: Bank for International Settlements (BIS)

Causas não excludentes, mas insuficientes para explicar a crise

As hipóteses apontadas para explicar a crise não são necessariamente excludentes. É possível entender que equívocos de política econômica durante o primeiro governo Dilma aumentaram tensões inflacionárias e desequilibro externo que tornaram a economia brasileira especialmente vulnerável à queda de preços de commodities de 2014 a 2016. Os inevitáveis ajustes tornaram a política macroeconômica de 2015 procíclica, agravando a crise. O ajuste fiscal inviabilizou a expansão do crédito direcionado e o ajuste monetário encareceu o crédito no segmento livre e as captações de mercado, induzindo um processo de desalavancagem de empresas.
Em algum grau, isso também ocorreu no final dos anos 90: a âncora cambial necessária para a implantação do Plano Real foi mantida por mais tempo que o necessário para assegurar a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, aumentando déficits externos (Gráficos 3 e 4). Adicionalmente, o déficit primário acumulado entre 1995 e 1998 (Gráfico 5) não contribuiu para manutenção da âncora cambial. O inevitável ajuste cambial de 1999 pressionou a inflação, intensificada pelo racionamento de energia de 2001/02, e prejudicou os agentes privados que haviam se endividado em dólares nos anos 90, gerando a necessidade de desalavancagem privada. O aumento da dívida pública que resultou da manutenção de juros altos e dolarização da dívida interna impediu que o setor público pudesse ter atuação anticíclica – em 1999 a política fiscal teve efeito mais contracionista que em 2015. Entretanto, recessão de 1998/99 foi muito mais suave e rápida que a crise atual (Gráfico 1). Neste sentido, não se pode descartar o papel das expectativas autorrealizadoras dos agentes econômicos como fator a intensificar a crise, como constatado em estudo de Roger E.A. Farmer.
Finalmente, a magnitude e a duração dos ajustes macroeconômicos são relativamente pequenas para explicar a profundidade e duração da atual crise econômica. Os fatores que contribuíram para a crise não estão mais presentes: em 2016, o preço das commodities se recuperou e a política fiscal deixou de ser contracionista e a partir de 2017 a política monetária tem sido fracamente expansionista, resultando em moderada expansão do endividamento privado – pelo sistema bancário para pessoas físicas e pelo mercado de capitais para pessoas jurídicas.

A operação Lava Jato

A Operação Lava Jato teve início no final do primeiro trimestre de 2014, pouco antes do início do ciclo recessivo. Em 2015, um Diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) afirmou que a Lava Jato estava relacionada com a recessão do Brasil. No final daquele ano, duas consultorias estimaram que a Lava Jato seria responsável pela maior parte da recessão daquele ano. O PIB da construção, setor que está no epicentro da Operação Lava Jato, caiu 28% entre 2014 e 2015, reforçando a relação entre a Operação e a crise.
Estudo recente publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que notícias de corrupção geraram redução do PIB per capita de cerca de 3%, um pouco mais nos países emergentes, em um horizonte de dois anos, o que explicaria quase 40% da queda do PIB per capita ocorrido desde 2014. Bráulio Borges, citando o mesmo estudo publicado pelo FMI, também acredita que, ao menos no curto-prazo, a Operação Lava Jato explique parte relevante da atual crise econômica.
A Operação Lava Jato revelou que, além de sobrepreço nas obras públicas, a corrupção gera uma alocação ineficiente de subsídios e investimentos públicos. Neste sentido, mesmo admitindo os custos de curto-prazo, é possível vislumbrar que o combate à corrupção gere efeitos positivos no longo-prazo ao criar um ambiente de negócios mais competitivo e previsível. Entretanto, tais benefícios esperados só subsistem quando se age na estrita legalidade. Nas palavras do então juiz Sergio Moro “(…) a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial.”. Entretanto, diversos juristas vêm apontando que a as condutas da Operação Lava Jato “(…) fere(m) qualquer sentido de democracia constitucional.”. Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, os diálogos recentemente revelados entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato evidenciam que a Operação Lava Jato feriu regras da magistratura.
Em outras palavras, os benefícios de médio e longo-prazo suplantam os custos de curto-prazo no combate à somente quando resultam em aprimoramento institucional. A previsibilidade das regras do jogo é essencial para o cálculo econômico. Entretanto, desde o início a Lava Jato não precisou seguir regras de casos comuns, com flexibilização de garantias constitucionais com embasamento “jurídico” em princípios vagos como “interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal”. Além disso, a Operação foi marcada por impasses entre diferentes órgãos públicos que atrasaram a realização de acordos de leniência, prolongando a crise nas empresas afetadas e, portanto, o processo de perda de valor. Mesmo após a realização do primeiro acordo de leniência que envolveu todos os órgãos de combate à corrupção, há críticas no sentido que esses acordos não teriam cumprido a lei anticorrupção.
Neste sentido, vale mencionar que, após o Mãos Limpas, operação de combate à corrupção que serviu de inspiração à Operação Lava Jato, a Itália tem sido uma das economias menos dinâmicas da zona do euro (Gráfico 9), havendo quem afirme que a corrupção só mudou de forma, pois (o Mãos Limpas) “não promoveu nenhuma melhora na transparência, na prestação de contas nem na capacidade de resposta das instituições políticas italianas.”

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Fonte: Banco Mundial

Considerações finais

Ainda há acalorado debate entre economistas sobre as causas da crise econômica iniciada em 2014. Embora tenham algum poder explicativo, os elementos apontados como causas da crise – erros na condução da política econômica do primeiro governo Dilma, queda do preço das commodities em 2014/15, ajuste fiscal e monetário recessivos de 2015 e redução do endividamento privado a partir de 2016 – não são aptas a explicar a magnitude da queda do PIB e a duração da crise. Neste sentido, estudos recentes publicados pelo FMI corroboram diversas estimativas que a Operação Lava Jato tenha contribuído significativamente para a crise no curto-prazo. O combate à corrupção poderia gerar ganhos de médio e longo-prazo se houvesse efetivo aprimoramento institucional. Entretanto, não vejo como sustentar essa hipótese, dado que a Operação Lava Jato dependeu de diversas regras excepcionais, desrespeitando normas constitucionais e infraconstitucionais. Além disso, não houve preocupação com a separação entre empresas e seus controladores corruptos, gerando destruição de valor, que foi agravada pelas disputas de protagonismo entre diferentes setores estatais, que prolongaram e ainda prolongam a crise de diversas empresas. A experiência italiana após o Mãos Limpas reforça a minha crença que os ganhos de longo-prazo podem nunca se materializar.

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A insustentabilidade da “PEC do teto de despesas”

Desde 2014, a União tem déficits primários recorrentes, principalmente devido à queda de receitas, reflexo direto da recessão. Desde o final do ano passado, as receitas têm crescido acima da inflação, mas ainda são inferiores das despesas primárias. Como se pode observar no Gráfico 1, a partir de 2015, as despesas reais da União têm se mantido estáveis, pois o aumento de dezembro de 2015 ocorreu devido a um evento extraordinário, a quitação do saldo remanescente das “pedaladas”. Portanto, a Emenda Constitucional 95/2016 (Novo Regime Fiscal), que determina o congelamento real das despesas primárias da União a partir de 2017, apenas manteve o congelamento de despesas reais da União que vinha ocorrendo desde 2015.

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Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

Nos meses iniciais de vigência no Novo Regime Fiscal, eu já havia apontado para a precariedade do ajuste fiscal, que recaia desproporcionalmente sobre os investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Como praticamente metade das despesas primárias da União é com benefícios do INSS e aposentadorias e pensões de servidores públicos, a viabilidade do Novo Regime Fiscal depende de uma reforma da previdência profunda que diminua o ritmo de crescimento das despesas, ao mesmo tempo que adie aposentadorias nos próximos anos. Mesmo após recuar nos aspectos mais regressivos e manter privilégios, o governo Temer não conseguiu aprovar a reforma, inviabilizando a cumprimento do Novo Regime Fiscal até o final da presente década.

Conforme se observa no Gráfico 2, a trajetória das despesas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e dos benefícios assistenciais (Benefício de Prestação Continuada, BPC) não teve alteração significativa nos últimos anos. As despesas de pessoal, que aumentaram menos que a inflação em 2015 e 2016, tiveram aumento real de 7% em 2017, resultado de diversos acordos que beneficiaram principalmente a elite do funcionalismo e que irão aumentar ainda mais com o aumento do teto constitucional a partir de 2019. Há ainda o incerto aumento de despesas decorrentes da Emenda Constitucional 98/2017, a qual determina a inclusão de servidores de ex-territórios nos quadros da União.

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Fonte: STN

Por essa razão, o ajuste tem recaído exclusivamente sobre as outras despesas obrigatórias e sobre despesas discricionárias. Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, as outras despesas obrigatórias caíram 19% e as despesas discricionárias caíram 9% em termos reais (Gráfico 2). É de se esperar que o corte de despesas obrigatórias seja cada vez mais difícil devido ao forte ajuste ocorrido nos últimos anos. O corte nas despesas discricionárias também tem uma composição ruim: nos últimos 20 meses, a despesa real com o MCMV caiu 58% e as despesas do PAC caíram quase 29%. Já as despesas discricionárias do Judiciário de Ministério Público da União tiveram queda real bem mais modesta, de 6%, sendo que, ao contrário do PAC e do MCMV, tinham sido preservadas entre 2015 e 2016 (Gráfico 3)

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Fonte: STN

Em outras palavras, além e não promover a reforma da previdência, o governo cede a todo momento às corporações de servidores públicos, risco que já havíamos apontado neste Blog quando o Novo Regime Fiscal era conhecido como “PEC do teto”. No ano que vem, as despesas com previdência e pessoal continuarão aumentando e será praticamente impossível acomodar esses aumentos com cortes de outras despesas, dado o patamar bastante deprimido que se encontram. A revogação da PEC dos gastos não será uma escolha política, mas uma imposição da realidade. Desde já, o debate deve ser não sobre a eventual manutenção do teto de despesas, mas qual a regra que irá substituí-lo.

A Nova Matriz Econômica e o esforço pela criação de uma narrativa que confirme aquilo que sempre se acreditou

O debate sobre a depressão econômica desta década é interessantíssimo não tanto pelos argumentos econômicos, mas por mostrar que boa parte da discussão é pura ideologia[1]. Como o fracasso é órfão, é natural que praticamente ninguém reivindique a política econômica adotada por Dilma. A FIESP é o melhor estereótipo: de grande patrocinadora da Nova Matriz Econômica (NME), tornou-se avessa a “pagar o pato” quando o ajuste se tornou inevitável. Os social-desenvolvimentistas, queridinhos da esquerda, também são seletivos: a única grande crítica ao primeiro governo de Dilma são as desonerações de folha de pagamentos e, para eles, a grande causa da crise de 2015 e 2016 foi a combinação da queda de preços das commodities no final de 2014 (fora do alcance do governo), aumento da Selic entre o final de 2014 e 2015 e a tentativa de ajuste fiscal de 2015. A crítica liberal, mais comum e dominante, atribui praticamente todos os males do Brasil à NME ou, em algumas visões mais extremas, à política econômica adotada a partir da crise de 2008, como se houvesse continuidade na política econômica adotada. Para muitos economistas, parece que mais importante que entender as causas da crise brasileira, é manter aquilo que sempre foi defendido.

Neste debate, acompanho integralmente Bráulio Borges[2]: embora a NME explique parte da atual crise econômica, ela provavelmente não é o principal determinante da depressão econômica de 2015 e 2016. O efeito dos choques climáticos, de preços internacionais de commodities e da Operação Lava Jato têm sido subestimados e até mesmo negligenciados. Além disso, ao contrário de um discurso bem comum, a política econômica adotada pelos governos petistas desde 2008 não é homogênea e pode ser dividida em quatro fases: i. medidas anticíclicas para compensar a interrupção abruta dos fluxos de capital e do crédito privado (set/08 a dez/10); ii. reversão parcial das medidas anticíclicas para baixar a inflação, que ameaçava estourar o teto da meta, e algumas medidas fiscais estruturais, com destaque para a regulamentação do FUNPRESP, que irá zerar o déficit da previdência dos servidores civis em 3 décadas, e medidas setoriais pontuais como desoneração de folhas de pagamentos de setores intensivos em mão de obras e sujeitos à competição externa como forma de compensar a combinação de sobrevalorização cambial e elevação de salários reais (jan/11 a ago/12); iii. manipulação de preços administrados via MP do setor elétrico, continuidade da defasagem de preços dos combustíveis, mesmo quando restava evidente que a alta do petróleo não era transitória, extensão das desonerações fiscais, antes restrita a setores intensivos em mão de obra e sujeitos à competição externa, manipulações contábeis e pedaladas para atingir a meta fiscal (set/12 a out/14) – grosso modo, esse é o período da NME; iv. correção de preços administrados, perseguição do centro da meta de inflação via alta da Selic, correção de distorções fiscais com medidas pontuais como mudança nas regras do seguro desemprego e pensão por morte, pagamento de pedaladas de anos anteriores e tentativa de ajuste fiscal mais estrutural (nov/14 a mar/16).

No início de 2013 eu já criticava a política econômica adotada, principalmente quanto ao câmbio sobrevalorizado e a política fiscal, e já mencionava a necessidade de uma reforma da previdência que estabelecesse idade mínima de aposentadoria aos 65 anos[3]. Com alguma defasagem, passei a me opor à MP do setor elétrico, que além de causar elevados prejuízos para a Eletrobrás, incentivou consumo de energia elétrica justamente quando os reservatórios das hidrelétricas se esvaziavam. De maneira análoga, a contenção dos preços da Petrobrás em momento de realização de vultosos investimentos no pré-sal induziu a um aumento excessivo do endividamento externo da estatal. No final de 2014 fui entusiasta da nomeação de Joaquim Levy e continuo acreditando que, se o ajuste fiscal proposto em 2015 fosse implementado, a crise econômica teria sido mais branda.

Divirjo fortemente – talvez mais que dos economistas liberais – de quem vê na política macroeconômica de 2015 a causa da crise econômica por quatro fatores: a) se o governo reagisse ao choque externo de 2014 com expansão fiscal, o aumento do consumo de energia esbarraria no baixo nível dos reservatórios e provavelmente teríamos um racionamento de energia elétrica – naquela conjuntura, havia um gargalo intransponível no curto-prazo; b) o ajuste fiscal de 2015 foi apenas marginal, demandaria um multiplicador muito elevado e praticamente instantâneo para ter papel relevante na recessão em 2015; c) embora tenha havido aumento do endividamento privado, este aumento foi relativamente modesto e foi concentrado no segmento direcionado, de taxas de juros bem mais baixas[4]; d) em uma economia de elevada inércia inflacionária como a brasileira, é extremamente arriscado esperar que uma inflação de dois dígitos e altamente difundida, como a que tivemos entre 2015 e o início de 2016, baixasse sem uma política monetária contracionista. A Selic não aumentou para combater a alta de preços administrados, mas para impedir que aquela alta contaminasse os demais preços e elevasse estruturalmente o patamar inflacionário.

Aproveito este espaço para fazer uma autocrítica de algumas avaliações que hoje considero equivocadas:

  • Continuo não acreditando em artificialidade na queda da Selic de 2011. A narrativa dominante é que, em agosto de 2011 não haveria condições para que o Copom reduzisse a Selic, pois naquela época o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado nos 12 últimos meses estava acima do teto da meta de inflação. Entretanto, a política monetária é defasada e, por isso, a Autoridade Monetária deve trabalhar com cenários prospectivos – em junho de 2012, quando os efeitos da política monetária adotada em 2011 estavam se materializando, o IPCA havia caído para menos de 5%, próximo do centro da meta de inflação. O problema, que na época eu não me atentei e agora admito erro de avaliação, foi a forma como se deu essa redução da Selic, que havia aumentado em julho de 2011 (de 12,25% para 12,5%), para cair em agosto de 2011 (de 12,5% para 12%). A falha na comunicação do Copom deteriorou canal das expectativas. Melhor seria que o Copom aguardasse alguns meses para depois reduzir a taxa Selic;
  • Quando a MP do setor elétrico foi anunciada, eu não tive noção do quão negativa foi a norma, que gerou grave desequilíbrio para a Eletrobrás, aumentou a percepção de risco regulatório e incentivou o consumo de energia quando o governo deveria ir no sentido contrário devido à queda do nível dos reservatórios;
  • Entre 2011 e 2013, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) subestimou o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto as prévias iniciais apontavam para taxas de crescimento de 2,7% (2011), 0,9% (2012) e 2,3%), as leituras definitivas mostraram PIB crescendo a 4% (2011), 1,9% (2012) e 3% (2013). Em diversos momentos, acreditei que economia estava estagnada, mas na verdade a demanda vinha crescendo acima do potencial;
  • De maneira análoga, as Notas de Política Externa do Banco Central do Brasil (BCB) subestimaram os déficits em transações correntes em 47% (2011) e 37% (2012), como se pode observar no Gráfico 1. Em diversas análises, subestimei o impacto negativo do câmbio sobrevalorizado.

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Fonte: BCB

[1] Para uma ideia geral de como o debate econômico muitas vezes se perde em falseamento do passado, vide http://blogdoibre.fgv.br/posts/o-debate-economico-nao-precisa-de-espantalhos

[2] http://blogdoibre.fgv.br/posts/impacto-dos-erros-reais-da-nova-matriz-tem-sido-muito-exagerado

[3] https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/as-reformas-estruturais-necessarias-na-economia

[4] Já publiquei neste Blog sobre a evolução do envidamento privado https://bianchini.blog/2016/11/01/notas-sobre-o-ciclo-de-endividamento-do-setor-privado-nao-financeiro/

 

A precariedade do ajuste sob o novo regime fiscal

Desde meados de 2015 tem havido relativa estabilização das despesas primárias reais da União. Os saltos ocorridos em 2015 e 2016 se devem à quitação das pedaladas em 2015[1] e quitação extraordinária de restos a pagar em 2016[2], eventos extraordinários que não irão se repetir. No caso das receitas primárias da União, depois de uma queda expressiva causada pela recessão de 2015 e 2016, há sinais de estabilização da arrecadação (Gráfico 1)

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Fonte: Tesouro Nacional

Os dados fiscais relativos ao primeiro semestre de 2017 pelo Tesouro Nacional[3] e as declarações mais recentes de integrantes do governo já trazem algumas pistas sobre como a Emenda Constitucional 95/16, que introduz o novo regime fiscal, com congelamento real de despesas da União, vai ser cumprida[4].

  1. Aumento da base de cálculo

A quitação extraordinária de restos a pagar no final de 2016 foi um meio de inflar o teto de despesas do novo regime fiscal, que tomou como base as despesas primárias de 2016. Recentemente, o Tesouro Nacional propôs “Aprimoramento” no tratamento das operações do Financiamento Estudantil (FIES), que na prática resultará em aumento de R$ 7,6 bilhões no teto de despesas para 2017:

“A STN promoverá revisão da apuração da base de cálculo (2016) e dos limites de despesas primárias anuais dos próximos 20 anos, em linha com a EC nº 95/2016. O total de despesas primárias de 2016 sujeitas ao NRF será alterada de R$ 1.214.384.410.569 para R$ 1.221.426.998.648, e o limite para 2017, calculado conforme o inciso I, §1º do art. 107, passará de R$ 1.301.820.088.130 para R$ 1.309.369.742.551 (…)”[5]

  1. Contingenciamento de despesas discricionárias, como investimentos

Em 2016, quase dois terços das despesas primárias da União foram com aposentadorias e pensões do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), benefício de prestação continuada (BPC), voltado para idosos e pessoas com deficiências pobres[6], e funcionalismo público civil e militar, na ativa, aposentados e pensionistas (Gráfico 2). Tais despesas são rígidas, pois benefícios previdenciários e vencimentos de servidores são constitucionalmente irredutíveis (CF, art. 194, IV e art. 37, XV) e têm dinâmica de curto-prazo própria independente da área fiscal. Como o novo regime fiscal não ataca a dinâmica dessas despesas, elas continuam crescendo vegetativamente, o que leva o ajuste a recair de maneira muito violenta sobre o terço restante dos gastos, especialmente sobre as despesas discricionárias, como investimentos: nos 12 meses encerrados em junho de 2017, as despesas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa “Minha Casa, Minha Vida” já caíram mais de 20% em relação a 2016.

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Fonte: Tesouro Nacional

  1. Formais mais heterodoxas de gerenciamento de despesas

A despesa de estatais não dependentes não estão sujeitas ao teto real de despesas. Por essa razão, uma forma de contornar o teto de despesas é por meio do aumento de investimentos dessas estatais[7]. Quando os investimentos executados estiverem além da capacidade financeira das estatais, a solução é dada pela pelo próprio regime fiscal, que exclui o aporte de capital em estatais não dependentes do teto de despesas (ADCT, art. 107, §6º, IV).

Para o próximo ano, a Secretária do Tesouro já sinalizou que a União pode não honrar reajustes de servidores estipulados em leis já sancionadas e publicadas[8], algo que certamente irá gerar demandas judiciais e eventuais esqueletos no futuro. Cabe lembrar que as carreiras jurídicas, auditores fiscais e Política Federal não estarão sujeitas ao contingenciamento, pois asseguraram aumento por uma “gratificação por produtividade” estendida a inativos.

  1. Corporações blindadas[9]

Quando o novo regime fiscal foi proposto, uma das reações mais violentas veio de corporações públicas receosas de perderem privilégios. Uma consequência disso foi que Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria não estão sujeitos ao teto de despesas entre 2017 e 2019 (ADCT, art. 107, §§ 7º e 8º). À época, isso se justificou para assegurar aumentos de vencimentos escalonados para os primeiros anos de vigência do novo regime fiscal. Entretanto, mesmo quando se desconsidera este argumento, é possível verificar que o limite de despesas trata Judiciário e Ministério Público de maneira diferenciada. Enquanto as despesas com o PAC e “Minha Casa Minha Vida” caíram mais de 20%, as despesas discricionárias do Poder Judiciário e do Ministério Público da União caíram cerca de um terço disso, 6,9% (Gráfico 3). Também há que se fazer menção ao autoconcedido reajuste de 16% para procuradores do Ministério Público da União, cujo impacto será incerto, pois gerará efeitos em cascata sobre MPs estaduais, Defensorias e Poder Judiciário.

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Fonte: Tesouro Nacional

Conclusão

Nos primeiros meses de 2017, embora o déficit primário continue elevado e sem perspectivas de redução significativa no curto-prazo, já se verifica alguma estabilização nas trajetórias de receitas e despesas da União. Também é possível avaliar como se vai se dar o cumprimento do teto de despesas do novo regime fiscal: recálculos e reclassificações de despesas do passado para aumentar o teto de despesas, compressão de investimentos a um mínimo possível, uso de estatais para realização de investimentos e medidas juridicamente questionáveis, mas que só irão gerar passivos para os próximos governos. Por outro lado, Poder Judiciário, Ministério Público e algumas corporações do Executivo praticamente estão imunes ao novo regime fiscal. Trata-se, portanto, de um ajuste precário, pois insustentável no longo-prazo, pretensamente transparente, pois depende de sucessivas modificações em séries históricas, e regressivo, pois tem poupado quem está no topo da pirâmide.

[1] https://bianchini.blog/2016/04/05/pedaladas-fiscais-e-impeachment/

[2] http://www.fazenda.gov.br/noticias/2017/janeiro/governo-reduz-em-r-37-5-bilhoes-o-estoque-de-restos-a-pagar-para-2017

[3] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/web/stn/resultado-do-tesouro-nacional

[4] As regras do Novo Regime Fiscal estão mais detalhadas em outro texto que escrevi neste Blog: https://bianchini.blog/2016/10/15/o-novo-regime-fiscal-e-as-vinculacoes-de-despesas-com-saude-e-educacao/

[5] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/0/Nota+t%C3%A9cnica+-+Discrep%C3%A2ncia+estat%C3%ADstica/a77b5354-d6ab-4bcd-887e-7519085276d8

[6] Ao discorrer sobre a reforma da previdência, escrevi sobre as regras de concessão de benefícios do INSS e BPC: https://bianchini.blog/2017/02/14/breves-consideracoes-sobre-a-pec-28716-reforma-da-previdencia/

[7] http://www.valor.com.br/brasil/4882402/planejamento-preve-execucao-recorde-do-orcamento-de-estatais

[8] http://www.valor.com.br/brasil/5055296/governo-estuda-adiar-reajustes-do-executivo-diz-secretaria-do-tesouro

[9] Quando o Novo Regime Fiscal era uma proposta de emenda constitucional já ficou bem claro que as corporações tentariam não se sujeitar ao teto de despesas: https://bianchini.blog/2016/10/08/o-primeiro-teste-da-pec-241-as-corporacoes-publicas/

Argumentos falaciosos sobre a crise fiscal e o lobby da PEC 241

No lobby pela aprovação da PEC 241 há um vale tudo argumentativo. O texto do “Economês em bom Português”[1] é exemplar dessas falácias: 1. A leitura induz o leitor a acreditar que a carga tributária sobe há duas décadas, o que não é verdade: o aumento da carga tributária se deu entre 1997 e 2005 (de 26,5% em 1996 para 33,6% do PIB em 2005) e após a crise de 2008 houve queda moderada da carga tributária, que no ano passado foi de 32,7% do PIB. 2. Entre dez/13 e ago/16, a dívida pública bruta teve aumento de R$ 1,28 trilhão, indo de 51,7% para 70,1% do PIB – uma trajetória claramente insustentável. Desse montante, R$ 203 bilhões, menos de 16%, decorre do acúmulo de déficits primários no período. Portanto, esse salto argumentativo dos déficits primários para a dívida pública é mentiroso; 3. Parte desse déficit primário de R$ 203 bilhões se deve à quitação de pedaladas fiscais ocorrida durante o segundo governo Dilma – em 2015, quase metade do déficit primário se deve à quitação de pedaladas de anos anteriores; 4. Aliás, até 2013 o setor público brasileiro produzia elevados superávits primários e, a partir de 2014, o déficit primário do setor público brasileiro não é muito diferente do que vem ocorrendo com outros países emergentes[2]. Com isso, não quero dizer que não exista um grave problema fiscal, mas apenas que a política fiscal e as pedaladas são quase nada para explicar o problema, que está muito mais relacionado à política cambial (acúmulo de reservas com elevado custo de carregamento e, em menor medida, prejuízos com swaps cambiais) e monetária. Uma discussão séria não se faz comparando as finanças públicas com economia doméstica, mesmo porque famílias não fazem política cambial e monetária.

Retificação em relação ao texto inicialmente postado: os limites da PEC dizem respeito à União e preservam as principais transferências a estados e municípios. A PEC afeta entes subnacionais pela revogação do art. 2o da EC 86/15, segundo qual a União contribuiria com recursos para custeio da saúde de estados e municípios, mas não implica congelamento de despesas reais dos entes subnacionais.

[1] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/por-que-economes-em-bom-portugues/2016/10/1820874-entenda-por-que-o-brasil-precisa-da-pec-do-teto.shtml

[2] http://www.imf.org/external/ns/cs.aspx?id=29

Nos primeiros meses do ano, há sinais de que o déficit público será menor que em 2015, mas ainda assim, em patamar insustentável

Em 2015, o déficit público foi de 10,38% do Produto Interno Bruto (PIB) em decorrência de três de fatores extraordinários: a quitação das pedaladas, que aumentou o déficit primário em quase 1% do PIB, prejuízos com swaps cambiais de 1,7% do PIB e a combinação de inflação elevada e aumento da taxa Selic, que elevou as despesas com juros da dívida pública de 5,3% do PIB para 6,8% do PIB[1]. Sem esses fatores, o déficit nominal teria ficado entre 7% e 8% do PIB. Como em 2016 não há passivos de anos anteriores a quitar, a maioria dos swaps cambiais ofertados antes da depreciação cambial já venceu e a inflação começou a ceder, sinalizando queda da Selic em um futuro próximo, é de se esperar que em 2016 o déficit fiscal seja menor que em 2015, mas ainda maior que em 2014.

I. Saldo primário

De 2014 para 2015, o déficit primário aumentou de 0,57% do PIB para 1,88% do PIB. Em alguma medida, isso decorre da recessão, mas a principal causa disso foi a quitação das “pedaladas” fiscais de anos anteriores em dezembro de 2015[2]. Se em 2014 não houvesse pedaladas, o déficit primário teria sido de 0,8% do PIB. Por outro lado, se em 2015 não tivesse havido o acerto de contas, o déficit primário teria sido de 1,11% do PIB, em vez de 1,88% do PIB divulgado. Portanto, 41% do déficit primário de 2015 se deve a despesas extraordinárias referentes a anos anteriores (Gráfico 1). No final de 2016, a quitação das pedaladas sairá do acumulado em 12 meses, gerando diminuição expressiva do déficit primário.

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Fonte: BCB

Por outro lado, mesmo desconsiderando o efeito causado pela quitação das pedaladas, há sinais preocupantes do ponto de vista do saldo primário do governo central. Como se pode observar no Quadro 1, no primeiro bimestre de 2016 houve aumento de 9% – próximo da inflação – das receitas líquidas a União. Por outro lado, as despesas primárias do governo central cresceram 16,8%, transformando o superávit primário do primeiro bimestre de 2015 em déficit primário neste ano.

As despesas discricionárias caíram 0,5%, resultado determinado principalmente pela redução no programa “Minha Casa, Minha Vida”, cujas despesas do primeiro bimestre de 2016 foram 54,6% menores que as do primeiro bimestre do ano passado. Por outro lado, contrastando com os poderes executivo e legislativo, que aumentaram as despesas discricionárias em apenas 0,2%, a Justiça Federal e o Ministério Público da União aumentaram os gastos discricionários em 15,1%. As despesas discricionárias representam apenas um quinto das despesas primárias da União e já se encontram em patamar bastante reduzido, de modo que o ajuste fiscal somente será efetivo quando houver mudança na trajetória das despesas obrigatórias.

Em relação ao primeiro bimestre de 2015, houve aumento nas despesas obrigatórias com seguro desemprego (78,5%), benefícios previdenciários (14,6%) e benefício de prestação continuada (13,9%). A continuidade da recessão tende a e aumentar as despesas com seguro desemprego, enquanto o aumento do salário mínimo ocorrido no início de 2016 tornará as despesas previdenciárias e o benefício de prestação continuada mais elevados que em 2015. No caso das demais despesas obrigatórias, o aumento se deve a uma parcela da quitação das pedaladas ocorrida em dezembro de 2015, mas que só foi contabilizada em janeiro de 2016.

Quadro 1 – Principais despesas primárias do governo central

R$ Bilhões Jan-Fev/15 Jan-Fev/16 Variação
Receitas Líquidas 175,6 191,3 9,0%
Despesas Primárias 172,6 201,6 16,8%
    Benefícios previdenciários 64,4 73,8 14,6%
    Pessoal e encargos sociais 38,1 41,0 7,7%
    Outras despesas obrigatórias 12,8 22,8 78,5%
    Abono e Seguro desemprego 7,3 13,2 81,9%
    Benefício de prestação continuada 6,9 7,9 13,9%
    Despesas discricionárias 43,1 42,9 -0,5%

Fonte: Tesouro Nacional

Em suma, mesmo se desconsiderarmos o efeito contábil da quitação das pedaladas, há um descompasso estrutural entre receitas e despesas primárias: enquanto as receitas seguem crescendo abaixo da inflação, os benefícios previdenciários, que representam 37% das despesas primárias, seguem crescendo acima da inflação. Embora necessária, a reforma da previdência e assistência social possui efeitos prospectivos, de modo que, enquanto não houver aumento da carga tributária, o déficit primário continuará em trajetória insustentável. Essa é a razão do pessimismo de diversos analistas: sem impeachment, com impeachment ou com novas eleições, em algum momento o governo terá de promover reforma da previdência e aumento da carga tributária, contrariando simultaneamente trabalhadores e empresários.

II. Juros Nominais

Em 2015, o setor público dispendeu 8,5% do PIB com juros, aumento expressivo em relação aos 5,5% do PIB de 2014. Como se pode observar no Gráfico 2, aproximadamente metade deste aumento se deve às perdas com swaps cambiais, instrumento financeiro utilizado pelo Banco Central do Brasil (BCB) na sua política cambial. Entre março de 2015 e fevereiro de 2016, a despesa líquida com swaps cambiais foi de R$ 80,2 bilhões (1,4% do PIB), diminuição de 0,3% do PIB em relação aos doze meses imediatamente anteriores. Esse movimento, associado com uma redução nos juros da dívida pública fez com que a carga de juros caísse de 9,12% do PIB nos 12 meses finalizados em janeiro de 2016 para 8,64% do PIB nos 12 meses encerrados em fevereiro.

A receita positiva com swaps ocorrida em fevereiro decorre da pequena apreciação cambial ocorrida no mês e do prazo relativamente curto dos swaps cambiais. Atualmente, a maior parte dos contratos de swaps foi negociada a partir de setembro de 2015, quando, em decorrência do rebaixamento do rating soberano do Brasil, o dólar passou a ser cotado próximo de R$ 4. Desse modo, a não ser que o dólar sofra maxidesvalorização e seja cotado a um valor significativamente mais elevado que R$ 4, a despesa com swaps tende a cair e se estabilizar nos próximos meses.

image002Fonte: BCB

O BCB também informou que, entre 1 e 18 de março de 2016, os swaps cambiais renderam R$ 44,1 bilhões para o BCB. Com isso, entre abril de 2015 e 18 de março de 2016, as perdas com swaps caíram para pouco menos de R$ 1 bilhão. Como entre o dia 18 e o dia 31 o real se apreciou frente ao dólar, é provável que o BCB tenha pequeno ganho líquido com swaps entre abril de 2015 e março de 2016. Desse modo, haverá expressiva redução da carga de juros, que cairá para algo em torno de 7,5% do PIB. Outro reflexo da alta do real é a perda de valor das reservas cambiais, o que resultará em aumento da dívida líquida do setor público, pois o governo central é credor líquido externo.

Os números a serem divulgados no final do próximo mês também mostrarão redução da exposição do BCB em swaps cambiais, algo que está ocorrendo tanto pela não rolagem de parte dos contratos vincendos, quanto pela oferta de contratos de swaps cambiais reversos[3]. Com o vencimento dos contratos de swaps mais antigos e diminuição da exposição em swaps, é de se esperar que a despesa líquida com swaps não volte aos patamares elevados de 2015.

Finalmente, a inflação do primeiro trimestre tem dado sinais consistentes de queda, o que tende a possibilitar a queda da Selic em meados de 2016. A redução simultânea da inflação e da Selic tende a diminuir o custo da dívida pública, aliviando a carga de juros[4].

 

Conclusão: Em 2015 o déficit público foi excepcionalmente elevado por uma série de fatores extraordinários que não tendem a se repetir em 2016. Ainda assim, este será o terceiro ano de déficit público insustentável. Reflexo disso é a trajetória da dívida bruta do governo geral, que aumentou em mais de 15% do PIB nos dois últimos anos – de 52,1% do PIB em fev/14 para 67,6% do PIB em fev/16. Para sairmos dessa trajetória insustentável, são necessárias reformas estruturais que diminuam a rigidez e limitem o crescimento das despesas e, ao mesmo tempo, aumentem a arrecadação. Definido o destino do processo de impeachment, governo e oposição devem aceitar o resultado para que a agenda política tenha como foco um ajuste rápido e expressivo das contas públicas.

[1] http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC

[2] Para uma análise detalhada das pedaladas fiscais, vide: https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/04/05/pedaladas-fiscais-e-impeachment/

[3] http://www.valor.com.br/financas/4506380/dolar-cai-10-em-marco-maior-recuo-mensal-desde-2003

[4] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/03/23/em-meio-ao-noticiario-politico-indicadores-de-desemprego-inflacao-e-setor-externo/

Pedaladas fiscais e impeachment

A) O conceito de “pedaladas” fiscais

Um dos fundamentos para o pedido de impedimento da presidenta da República são as chamadas “pedaladas” fiscais, expedientes utilizados para inflar o resultado primário do setor público, facilitando o atingimento de metas fiscais, por meio do atraso de repasse de recursos do Tesouro Nacional (TN). Basicamente, as pedaladas dizem respeito a programas sociais (AI) e subsídios creditícios (AII).

AI) Pagamento de Bolsa Família, Abono Salarial e Seguro Desemprego pela Caixa Econômica Federal (CEF)

Como esses programas beneficiam milhões de pessoas, é impossível saber de antemão os valores que serão sacados a cada dia. Por essa razão, o TN transfere para a CEF uma estimativa de desembolsos. Se as transferências do TN forem superiores aos saques, a CEF remunera o TN pelos juros do saldo remanescente. Se as transferências do TN forem inferiores aos saques, o TN paga à CEF os juros incidentes sobre o saldo negativo. A existência de saldos negativos está prevista nos contratos firmados entre a União e a CEF. Para que as contas relativas a esses programas nunca fiquem negativas, seria necessário que o TN depositasse valores consideravelmente superiores à média de saques, o que tornaria a gestão de caixa do TN ineficiente. Por essa razão, o TN deve cobrir eventuais saldos negativos e avaliar a necessidade de aumentar os valores depositados nos meses seguintes. Em situações normais, valores negativos assemelham-se às despesas liquidadas e não pagas, o que é admitido pela Lei 4.320/64.

Em excelente análise sobre o assunto, Sérgio Spagnuolo e Tai Nalon[1] demonstram que, nos 204 meses compreendidos entre 1994 e 2010, houve saldo negativo em 8 (3,9%), com os três presidentes que antecederam Dilma Rousseff. Já no primeiro governo Dilma, os saldos negativos não apenas foram mais frequentes, mas também maiores: entre julho de 2013 e setembro de 2014, apenas em janeiro de 2014 não houve saldo negativo. Adicionalmente, todos os meses em que o saldo negativo conjunto ultrapassou a marca de R$ 0,5 bilhão estão compreendidos neste período.

Entendo que essa é a questão central: saldos negativos não necessariamente configuram pedaladas, mas saldos negativos sistemáticos, elevados e que poderiam ser previstos de antemão certamente são irregulares. A partir de um certo ponto, o que é lícito e previsto em contrato pode tornar-se uma operação de crédito entre a União e um banco por ela controlado, o que seria vedado pelo art. 34, caput da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)[2]. Por essa razão, discordo tanto daqueles que rejeitam de antemão a qualificação de saldos negativos com operações de crédito[3], quanto de quem defende a ideia que todo saldo negativo seria uma operação de crédito.

De janeiro a outubro de 2015, Sérgio Spagnuolo e Tai Nalon identificaram saldo negativo apenas em março (R$ 12,2 milhões), acarretado por insuficiência na conta do seguro desemprego (R$ 44,5 milhões) não compensada por saldos positivos nas contas do bolsa família e abono salarial. O saldo negativo, além de relativamente baixo, não ocorreu nos meses seguintes. Adicionalmente, no primeiro semestre de 2015 houve expressivo aumento do desemprego, que superou as expectativas de mercado[4]. Certamente isso resultou em despesas com seguro desemprego acima do esperado.

Em suma, no que diz respeito às pedaladas do tipo AI, não tenho dúvidas de que as irregularidades ocorreram em 2013 e 2014, mas refuto as acusações de que este tipo de pedalada teria ocorrido em 2015. Cabe ressaltar que, a partir do Decreto 8.535/2015, em contratos firmados entre a União e instituições financeiras, estão vedadas cláusulas que permitam insuficiência financeira por mais de 5 dias úteis, o que tem efeito prático de criar um conceito objetivo para “pedaladas”. Trata-se simultaneamente de uma confissão que as pedaladas existiram e uma positivação do limite a partir do qual saldos negativos tornam-se operações de crédito.

AII) Compensações devidas pelo TN por subsídios concedidos por meio do Banco do Brasil (BB), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Os principais programas deste tipo são subsídios creditícios para produtores rurais (BB), Programa de Sustentação ao Investimento (PSI) operacionalizado pelo BNDES e Minha Casa, Minha Vida (FGTS). O crescimento dos subsídios creditícios foi um dos meios pelos quais se procurou estimular a economia desde a crise financeira de 2008. Neste caso, a concessão de crédito se dá com recursos do BB, BNDES e FGTS a taxas subsidiadas pelo Tesouro Nacional, que cobre a diferença entre o custo de captação dos recursos e a taxa de concessão do crédito. Como antes da crise de 2008 esses subsídios não tinham grande relevância, isso não atraía maior atenção. A divergência entre governo e Tribunal de Contas da União dizia respeito à forma de contabilização desses recursos e prazo para o Tesouro Nacional compensar o BB, BNDES e FGTS pelos subsídios.

No caso das operações com recursos do FGTS para o programa Minha Casa, Minha Vida, o TCU adotou o entendimento do Conselho Curador do FGTS, de que tais operações seriam operações de crédito e que, de acordo com o art. 3º da Lei 4.320/64, deveriam constar do orçamento. No caso do crédito subsidiado ofertado pelo BNDES, sucessivas portarias do Ministério da Fazenda adiaram o pagamento da compensação devida pelo TN. O TCU entendeu que a União se utilizou do poder de ente controlador para obrigar o BNDES a aceitar a postergação do pagamento das compensações devidas e que isso violaria o disposto no art. 36 da LRF. Portanto, não se entra no mérito se tais intervenções foram boas ou ruins, mas se violaram dispositivos legais.

B) Quantificando as pedaladas fiscais

Embora sejam mais conhecidas, as “pedaladas” do tipo AI possuem valor significativamente inferior que as do tipo AII. Além de supostas ilegalidades encontradas pelo TCU, as “pedaladas” são um meio de se ocultar passivos do governo central e maquiar metas fiscais, apresentando superávit primário maior que o efetivamente realizado. Cumprindo determinação do Acórdão TCU nº 3.297/2015, de 9.12.2015, o Banco Central do Brasil (BCB) publicou dados que permitem estimar o efeito das pedaladas sobre a dívida e o déficit público[5] e avaliar até quando essa prática ocorreu.

Com relação ao impacto na dívida pública, cabe mencionar que nem todo passivo do setor público é computado na dívida pública divulgada mensalmente pelo BCB. Entre os passivos desconsiderados pelo BCB, cabe destacar: precatórios vencidos e não pagos, despesas liquidadas e não pagas e restos a pagar de exercícios anteriores[6]. Como se observa no Gráfico 1, entre 2002 e meados de 2010, os passivos referentes a programas sociais e subsídios não chegavam a 0,2% do PIB. A pouca relevância justificava a não inclusão na dívida pública. O estoque cresceu continuamente de 2008 a 2014, chegando perto de R$ 60 bilhões e 1% do PIB, e, após regularização, o estoque ficou nulo no final de 2015[7]. Embora seja uma prática contábil reprovável, a quitação das pedaladas não explica 10% do aumento da dívida pública ocorrido em 2015, que aumentou de 57,2% do PIB em 2014 para 66,5% do PIB em 2015.

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Fonte: BCB

O efeito mais grave das pedaladas foi inflar os resultados primários do setor público, maquiando o cumprimento de metas fiscais. Além de contrariar os objetivos da LRF e da Lei 4.320/64, a imprecisão de estatísticas fiscais prejudica a realização da política monetária, pois uma política fiscal expansiva pode ser vista como neutra ou até restritiva. Como se pode observar no Gráfico 2, até 2012 as pedaladas foram relativamente pequenas em relação ao saldo primário e, em quatro anos (2002, 2004, 2005 e 2006), o resultado primário foi maior que o divulgado. Por outro lado, em 2013 e 2014, observa-se aumento da importância relativa das pedaladas no saldo primário (0,28% e 0,22% do PIB, respectivamente). Em 2015 ocorreu movimento oposto: 41% do déficit primário do ano passado se deve à quitação das pedaladas de anos anteriores.

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Fonte: BCB

C) Sobre o parecer prévio do TCU pela rejeição das contas de 2014

Conforme demonstrado nos Gráficos 1 e 2, é verdade que práticas análogas às pedaladas ocorreram antes do governo Dilma Rousseff, mas essas irregularidades adquiriram proporções significativas em 2013 e 2014. Ao avaliar as contas do executivo de 2013, o TCU não fez recomendações relativas aos saldos negativos de programas sociais (AI) e, no que diz respeito aos créditos concedidos pelo BNDES com subsídios do Tesouro Nacional, o TCU limitou a recomendar maior transparência, proferindo parecer pela aprovação das contas com ressalvas[8]. Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou as contas de 2013. Por outro lado, em decorrência das pedaladas e de outras ressalvas, o plenário do TCU recomendou, no início de 2015, a rejeição das contas do executivo de 2014[9]. Cabe ressaltar que as contas de 2014 ainda não foram julgadas pelo Congresso Nacional.

Não é um problema que o TCU mude sua jurisprudência ao longo do tempo – isso acontece a todo momento nos tribunais brasileiros. Em um país com o histórico brasileiro de descontrole fiscal, é salutar maior rigor das Cortes de Contas. Como se pode observar no Gráfico 3 (e no Gráfico 2), o volume de pedaladas de 2013 foi maior que o de 2014 e mesmo assim o TCU recomendou a aprovação das contas de 2013. Qual o fundamento da mudança na jurisprudência do TCU?  O segundo ano consecutivo de pedaladas em valor elevado? Seria o fato do volume de recursos devido pelo Tesouro ultrapassar um determinado patamar? Seria o conjunto das pedaladas com outras irregularidades? O TCU não deixou isso claro. Isso não passou despercebido por Marcelo Neves[10] e Ricardo Lodi Ribeiro[11], que chamam atenção para a falta de fundamentação da mudança de jurisprudência por parte do TCU. Ambos ressaltam que a virada jurisprudencial da Corte de Contas deveria produzir efeitos apenas a partir de 2015.

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Fonte: BCB

D) Impeachment e pedaladas fiscais

Embora eu entenda que pedaladas fiscais podem caracterizar crime de responsabilidade e que é possível impeachment em decorrência de condutas do mandato anterior[12]o presidente da mesa da Câmara dos Deputados acatou o pedido de impeachment apenas com relação a supostas irregularidades ocorridas em 2015. Ocorre que em 2015 não só não houve pedaladas, como os passivos de anos anteriores foram quitados (Gráficos 1 e 2). Mesmo se o critério utilizado por o acúmulo de passivos ao longo do ano, o estoque máximo de passivos não pagos não chega aos picos atingidos entre 2010 e 2014 (Gráfico 3). Portanto, não procede a acusação de que houve pedaladas em 2015. Embora o impeachment seja um julgamento essencialmente político, a fundamentação com base nas supostas pedaladas de 2015 é frágil.

NOTA

Após discutir sobre o texto com algumas pessoas, sinto a necessidade de esclarecer que para mim: 1. As pedaladas podem fundamentar pedido de impeachment, mas não nos termos atuais. Como entendo que as pedaladas ocorreram em 2013 e 2014, o impeachment por causa das pedaladas deve partir do pressuposto que é possível impeachment por atos da presidência em mandato anterior. Isso envolve um risco, pois diversos juristas entendem que o atos do mandato anterior não podem fundamentar impeachment. Na prática, é isso que o pedido de impeachment atual está fazendo; 2. A melhor saída seria que as pedaladas fundamentassem as ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Por meio das pedaladas, Dilma e Temer ocultaram a precariedade das contas públicas em 2014. Já em 2014 sabia-se das pedaladas e Temer não manifestou discordâncias quanto à prática. O TSE deveria decidir se isso é suficiente para impugnar as eleições de 2014. Evidentemente, há o risco de efeito em cascata com governadores que também pedalaram, o que envolveria alguma análise de proporcionalidade e modulação de efeitos. O precedente também seria positivo, sinalizando que mascarar resultados fiscais em anos de eleições pode resultar em algo inócuo. Finalmente: 3. Independentemente de 1 e 2, cabe ao TCU aplicar sanções administrativas aos administradores responsáveis pelas pedaladas.

NOTA 2

Como no texto afirmo que as pedaladas com a CEF são significativamente menores que as demais, atualizei o Gráfico 1 por uma versão que detalha o saldo das pedaladas por credor. Também inseri uma nota de rodapé esclarecendo que há uma diferença de contabilização entre o BCB e o TN e que, por essa razão, no demonstrativo do BCB ainda havia um saldo remanescente no final de 2015.

[1]https://medium.com/aos-fatos/dilma-pedalou-35-vezes-mais-que-lula-e-fhc-juntos-aee888dd1880#.dmspmxwzc

[2] Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.

[3] http://s.conjur.com.br/dl/parecer-ricardo-lodi-impeachment-dilma.pdf

[4] https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/02/25/taxa-de-desemprego-e-menor-que-a-esperada-pelo-terceiro-mes-consecutivo/

[5] http://www.bcb.gov.br/htms/notecon3-p.asp

[6] http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/finpub/cap5p.pdf

[7] O Tesouro Nacional quitou todo o saldo de pedaladas em dezembro de 2015, mas, em decorrência de diferentes conceitos de contabilização, o BCB registrou um saldo remanescente no final de 2015, que foi zerado em janeiro de 2016.

[8] (Recomendação à) Secretaria de Política Econômica e Secretaria do Tesouro Nacional. Elaborem e apresentem, no prazo de 90 dias, as projeções anuais, para este e os próximos três exercícios (2014 a 2017), dos valores correspondentes aos benefícios financeiros e creditícios decorrentes das operações de crédito concedidas pela União ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a partir de 2008, incluindo as respectivas despesas financeiras relativas aos juros e demais encargos decorrentes da captação de recursos pelo Tesouro Nacional, em cumprimento aos itens 9.1.5 e 9.1.6 do Acórdão 3.071/2012-TCU-Plenário, medida que visa a dar maior transparência às ações de governo e contribuir para que a sociedade possa conhecer e avaliar o custo das operações realizadas; http://portal.tcu.gov.br/tcu/paginas/contas_governo/contas_2013/index.html

[9] http://portal.tcu.gov.br/tcu/paginas/contas_governo/contas_2014/index.html

[10] https://cloudup.com/ig-cUkufb7N

[11] http://s.conjur.com.br/dl/parecer-ricardo-lodi-impeachment-dilma.pdf

[12] http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/08/1672125-presidente-reeleito-pode-sofrer-impeachment-por-ato-realizado-em-mandato-anterior-sim.shtml