A Constituição determina que 25% dos impostos deve ser destinada à manutenção de desenvolvimento do ensino – infantil e fundamental no caso dos municípios e, para os estados, fundamental e médio. Para permitir que entes federativos com baixa arrecadação de impostos tenham como destinar recursos para a educação, na década passada foi criado FUNDEB (sucessor do FUNDEF), fundo constituído por percentual dos impostos da União, estados e DF e repartido por estados e municípios de acordo com o número de alunos das redes públicas de educação básica. Isso tem contribuído para a progressiva expansão das redes de ensino infantil e médio, bem como expansão do ensino integral no ensino fundamental, que já se encontra universalizado. Ainda assim, poucos municípios conseguiram universalizar a pré-escola (etapa de ensino obrigatória) e as creches (embora não obrigatórias, os municípios devem disponibilizar vagas para quem precisar), e a maioria dos estados ainda não universalizou o ensino médio, um indício de que a vinculação de recursos para a educação básica ainda é insuficiente.
A falta de creches também afeta trabalhadores de baixa renda, especialmente mulheres, que não têm com quem deixar as crianças enquanto trabalham. Como neste ano há eleições municipais, é de se esperar que a fila de espera para vagas em creches seja um dos temas mais importantes a serem tratados pelos candidatos. O déficit de vagas em creches foi tema do debate entre candidatos à PMSP e de uma declaração de Freixo, candidato do PSOL à prefeitura do Rio de Janeiro. Segundo as próprias secretarias municipais de ensino, em São Paulo havia uma fila de 103,5 mil vagas em creches e de 3,4 mil em pré-escolas em junho de 2016[1]. No Rio do Janeiro, o déficit é de 25,5 mil vagas em creches[2]. Em 2014 e 2015, os dois municípios gastaram com educação mais que o mínimo constitucional.
O fato da fila por vagas nas creches municipais do Rio de Janeiro ser de aproximadamente um quarto da fila em São Paulo é um dado surpreendente, pois a população do município do Rio de Janeiro (6,5 milhões) é pouco maior que a metade do município de São Paulo (12 milhões), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Três hipóteses para isso seriam: diferenças de fecundidade, maiores gastos recentes para a diminuição do déficit de vagas ou um esforço educacional no passado que tenha legado ao Rio de Janeiro uma rede pública de educação infantil mais abrangente que a de São Paulo.
Embora não existam dados recentes sobre a fecundidade nos municípios, segundo o IBGE Rio de Janeiro e São Paulo estão entre os estados com menor taxa de fecundidade (1,6 filho por mulher)[3], indicando que a demanda relativamente menor no Rio de Janeiro provavelmente não decorra da fecundidade.
No município de São Paulo houve expansão de quase 100 mil vagas no ensino infantil desde 2013, o que só foi possível por gastos com educação significativamente maiores que o mínimo constitucional: no primeiro semestre de 2016, 34,1% dos impostos foram gastos com educação, contra 29,55% em 2015 e 28,69% em 2014[4]. Além de aumentar os gastos com manutenção e desenvolvimento do ensino, a PMSP tem deixado de usar as despesas com inativos da educação no cômputo do atendimento do mínimo constitucional: a partir de 2013, há retirada anual de 20% das despesas com inativos da educação, de modo que, a partir de 2018 o atendimento ao mínimo constitucional deixará de levar em conta as despesas com inativos. Já município do Rio de Janeiro destinou à educação percentual dos impostos significativamente menor que São Paulo: no primeiro semestre de 2016, 21,82% dos impostos foram destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino[5], contra 25,82% em 2015[6] e 25,42% em 2014[7]. Mesmo gastando menos, a pressão sofrida pelo município para expandir as vagas de ensino infantil é significativamente menor.
A comparação entre o número de matrículas também afasta a última hipótese. Segundo o município de Rio de Janeiro, há 68,3 mil matrículas nas creches e 83 mil matrículas em pré-escolas municipais ou conveniadas com o município[8]. Na PMSP, somando-se a rede direta e conveniada, havia 277,9 mil matrículas em creches e 215,1 mil matrículas em pré-escolas em junho de 2016. Ou seja, a despeito do número de matrículas nas creches municipais paulistanas ser 4,1 vezes o do Rio de Janeiro, a demanda não atendida é 4,1 vezes a do Rio de Janeiro. Isso para uma cidade em que a população é menor que o dobro do Rio de Janeiro. Sem dúvidas, um dado intrigante.
(Em milhares) | PMSP | PMRJ | SP/RJ |
Matrículas em creches | 277,9 | 68,3 | 4,1 |
Matrículas em pré-escolas | 215,1 | 83,0 | 2,6 |
Demanda creche | 103,5 | 25,5 | 4,1 |
População total | 11.967,0 | 6.476,0 | 1,8 |
Fonte: SME-SP, SME-RJ e IBGE
Inúmeros fatores podem explicar essa diferença: proporção de crianças em creches particulares, proporção de mulheres que trabalham fora de casa, propensão a recorrer a cuidadoras e migração. Isso também é um indício de que, conforme mais vagas forem criadas, famílias que não estavam cadastradas na fila de demanda passem a buscar uma vaga[9].
O que impressiona é que São Paulo e Rio de Janeiros são municípios com perfis demográficos, de renda e arrecadação bastante similares (Rio de Janeiro é um pouco mais pobre) e, ainda assim, a demanda por creches públicas é significativamente diferente. Isso demonstra a importância de mecanismos de repartição e vinculação de tributos como o FUNDEB, que deveria se tornar permanente, pois o FUNDEB foi introduzido por emenda nos ADCTs e, se não for renovado, deixará de existir na próxima década.
Neste sentido, estender a desvinculação de receitas aos estados e municípios, independentemente de atenderem à oferta de vagas no ensino infantil (municípios) e médio (fundamental), é um risco à progressiva universalização do ensino básico. Isso permitiria que entes federativos que não oferecem vagas para todas as pessoas reduzam despesas em educação, o que vai na contramão de um desenvolvimento equilibrado que promova igualdade de oportunidades. Quem acompanhou este artigo até aqui pode argumentar que a emenda constitucional é importante devido à rigidez de despesas públicas. De fato, a rigidez de despesas públicas é um problema grave, mas ela se deve às despesas obrigatórias e despesas irredutíveis (como vencimentos de servidores públicos), não à vinculação de 25% dos impostos com educação e 15% com saúde[11]. Por essa razão, é de se comemorar que a Emenda Constitucional 93, de 8 de Setembro de 2016, tenha preservado as vinculações de receitas com educação e saúde.
* A versão original do artigo foi escrita antes da promulgação da Emenda Constitucional 93/16 de partida de uma premissa equivocada de que a desvinculação de receitas seria aplicável aos mínimos constitucionais em educação e saúde.
[1] http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Main/Noticia/Visualizar/PortalSMESP/Demanda-Escolar
[2]http://aosfatos.org/noticias/freixo-afirma-que-42-mil-criancas-estao-fora-das-creches/
[3] http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv66777.pdf
[4]http://www.tcm.sp.gov.br/relatorios/AnualFiscalizacao/RAF%202015.pdf http://www.tcm.sp.gov.br/relatorios/AnualFiscalizacao/RAF%202014v2.pdf http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Educacao_3Bim_1469649267.pdf
[5] http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/6305891/4166556/RREOAnexo8.pdf . Não se pode dizer que a PMRJ descumpre a Constituição, pois os 25% dizem respeito ao ano calendário.
[6] http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/5896476/4158511/RREOReceitaseDespesasdoMDE.pdf
[7] http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/5189438/4135276/RREOanexo8.pdf
[8] http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros
[9]https://bianchiniblog.wordpress.com/2016/04/08/apesar-do-aumento-recorde-de-matriculas-na-rede-municipal-de-educacao-infantil-o-debate-sobre-a-administracao-haddad-e-centrado-nas-ciclovias/
[10]http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/08/senado-aprova-em-primeiro-turno-pec-que-prorroga-dru-ate-2023.html
[11] http://www.conjur.com.br/2016-mai-17/contas-vista-vinculacoes-orcamentarias-gastos-obrigatorios