Acesso à creche: demanda oculta, judicialização e grupos mais prejudicados

1. Acesso

Nesta semana, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou pesquisa sobre o acesso à educação dos brasileiros menores de quatro anos em 2015 . Naquele ano, apenas 26% das crianças de até três anos estavam matriculadas em creches, enquanto 46% das crianças não estavam matriculadas, embora os responsáveis desejassem obter uma vaga em creches públicas. Trata-se de uma evidência da inviabilidade de se atender a toda a demanda imediatamente, o que é admitido pelo Plano Nacional de Educação (PNE), cuja meta 1 – bastante ambiciosa, por sinal – é “ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE.”. Em 2015, isso significaria criar 2,5 milhões de vagas de creches, número próximo do total de crianças matriculadas nas redes públicas e privadas naquele ano (2,66 milhões).

Quadro 1: Acesso à creche da população menor de 4 anos

Creche integral (A)

14%
Creche meio período (B) 12%
Fora da creche (C = D+E) 74%
   Sem interesse (D) 28%
   Com interesse (E = F+G) 46%
       Não tomaram qualquer ação (F) 26%
       Tomaram alguma ação  (G = H+I+J+K) 20%
H)   Contato com creche, prefeitura ou secretaria para informações sobre           existência de vagas 12%
I)      Inscrição em fila de espera para vagas 7%
J)     Contato com parentes, conhecidos ou amigos que poderiam ajudar a conseguir uma vaga 1%
K)   Ação judicial solicitando uma vaga 0%

Fonte: IBGE

2. Demanda oculta

A dificuldade de obtenção de vagas em creches acaba desencorajando muitas famílias a procurar o poder público: 57% dos responsáveis com interesse em encontrar uma vaga em creche não havia procurado o poder público. Isso explica porque os municípios com maior oferta de vagas em creches também são os que têm maior demanda não atendida e indica que pelos próximos anos o aumento na oferta de vagas de creches não irá resultar em redução proporcional na demanda. Paradoxalmente, os gestores municipais que agirem com maior efetividade para ampliar as vagas em creches municipais serão ainda mais pressionados a ampliar a oferta de vagas, o que ficou bastante evidente no município de São Paulo nos últimos anos (Gráfico 1), conforme já expusemos neste Blog .

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Fonte: Secretaria Municipal de Educação (SME) de São Paulo

3. Judicialização

A educação infantil é organizada em creches (até 3 anos) e pré-escolas (4 e 5 anos). Embora a creche não seja etapa de ensino obrigatória (CF, art. 208, I), muitos juristas interpretam que o dever constitucional dos municípios de ofertar vagas para todas as crianças cujos responsáveis queiram matricular seus filhos em creches (CF, art. 208, IV e art. 2011, §2º) seja uma norma autoaplicável, levando alguns responsáveis recorrer ao Poder Judiciário. Trata-se de uma interpretação medíocre da aplicabilidade das normas constitucionais que dá aos integrantes do Ministério Público e Poder Judiciário a sensação de dever cumprido, mas, como visto no item 1, algo completamente desconectado da realidade operacional e orçamentária dos municípios.
Devido à demanda oculta, a judicialização também tende a punir os gestores municipais que criam mais vagas em creches. De fato, na região Sul, que possui o maior percentual de crianças matriculadas em creches, é a região com maior índice de responsáveis que buscam obter vagas pela via judicial (0,36%), índice de apenas 0,02% no Nordeste, região com menor acesso a creches. Ademais, a judicialização tem o efeito de priorizar famílias mais informadas sobre o acesso ao Judiciário, que não necessariamente são as famílias com maior necessidade da vaga. Neste sentido, a intervenção judicial deveria se dar apenas em ações coletivas motivada por omissão do poder público municipal em ampliar a rede municipal de educação infantil.

4. Maiores prejudicados: pobres e mulheres

O IBGE também constatou que o rendimento médio mensal domiciliar das famílias das crianças matriculadas em creches de período integral era de R$ 972, contra R$ 813 das crianças que passavam o dia em outro domicílio (eventualmente mediante pagamento) e R$ 550 das crianças que permaneciam o dia todo na própria casa. Conforme se pode observar no Gráfico 2, a demanda não atendida por creches é maior entre as famílias com renda domiciliar per capita inferior a 1 salário mínimo.

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Fonte: IBGE

Além disso, o déficit de vagas em creches é um problema que afeta principalmente mulheres: 83,8% das crianças tinha como principal responsável mulheres e apenas 16,2% homens. Isso ajuda a explicar as pesquisas que constatam que as mulheres despendam mais horas que os homens no trabalho doméstico . A proposta de equiparação da idade de aposentadoria de homens e mulheres devido ao diferencial salarial cada vez menor entre homens e mulheres e à maior expectativa de vida e de sobrevida das mulheres frequentemente é criticada devido ao fato que as mulheres são mais oneradas que os homens com trabalho doméstico. Do ponto de vista social, faria mais sentido manter os subsídios à aposentadoria feminina ou direcionar recursos para a ampliação da oferta de vagas de educação infantil, algo que tende a beneficiar proporcionalmente mais as mulheres que os homens?

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4 comentários sobre “Acesso à creche: demanda oculta, judicialização e grupos mais prejudicados

  1. Olá, Rafael. Texto muito informativo, mas discordo de uma das conclusões (talvez a principal, por ter mais destaque no final do texto):

    “Do ponto de vista social, faria mais sentido manter os subsídios à aposentadoria feminina ou direcionar recursos para a ampliação da oferta de vagas de educação infantil, algo que tende a beneficiar proporcionalmente mais as mulheres que os homens?”

    A questão vem logo depois da menção aos que criticam esse ponto na reforma da previdência, o que sugere que a resposta natural à sua pergunta (que o melhor seria mais creches) seria incompatível com o argumento desses críticos. Sou um desses críticos, mesmo concordando que a melhor solução seria construir mais creches.

    Se estivesse na mesa exatamente essa proposta de uso dos recursos públicos, talvez eu eu apoiasse. Mas ela não está. Escrevi um texto sobre a previdência e, na parte que trato do diferencial entre homens e mulheres, concluo:

    “(…) o problema [das mulheres] pode ser outro, mas aumentá-lo não me parece uma boa política. Quando houverem políticas efetivas no mercado de trabalho, aí sim poderemos discutir a igualdade na idade de aposentadoria ou qualquer outro ‘privilégio’ das mulheres”

    A minha preocupação é que se aprove a igualdade nas idades de aposentadoria e só. Aí é ruim! A sua proposta é boa, mas infelizmente não é isso que está na pauta – e seu texto leva a crer que é. Se você tivesse colocado essa proposta como algo ideal, concordaria com tudo, mas no contexto que você colocou achei um argumento ruim.

    Espero ter contribuído com suas reflexões. Abraço e obrigado pelos textos cheios de informação e dados!

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